Mentirataria
Alexandre Oliva
A estratégia é antiga: "Se vão roubar, queremos que roubem do nosso. Vão ficar viciados, aí depois a gente dá um jeito de que paguem", disse Bill Gates numa palestra na Universidade de Washington em 1998. Longe de mim defender o roubo, a violência da pirataria (em sua acepção verdadeira, de saquear navios, que fique claro) ou mesmo a cópia não autorizada de obras monopolistas. A cópia não autorizada beneficia o monopólio, e todo mundo sabe que monopólios em geral fazem mal pra sociedade.
Se alguém inventasse uma maravilhosa copiadora universal, uma máquina capaz de copiar qualquer coisa com perfeição, praticamente sem custos, seria correto taxar de vilão quem copiasse pão para quem tem fome, agasalho para quem tem frio, remédios para quem tem moléstias, livros para quem tem sede de saber? Ou vilões seriam as indústrias de pão de forma e de moda, se tentassem proibir o uso dessa máquina, para preservar, de forma artificial, a escassez que tornava seu comércio mais lucrativo?
Mas olha só: os drives gravadores de disquetes, CDs e DVDs, os computadores, a Internet, são essas maravilhosas copiadoras universais, capazes de copiar com perfeição, praticamente sem custos, qualquer informação armazenada em meio digital: textos, imagens, sons, filmes, programas de computador, etc.
Falando sério, se eu copiasse um pão com um máquina como essas, o padeiro da esquina teria algum prejuízo? Talvez deixasse de vender um pão, ou vários, que ele fez com expectativa de vender para mim, ou para alguém. Mas eu também poderia comprar o pão noutro lugar, ou fazer o pão eu mesmo, ou até decidir ficar sem aquele pão a mais. Agora, dizer que isso é o mesmo que roubar do padeiro da esquina, que somos saqueadores de navios só porque não compramos o pão que ele amassou, porque o privamos do lucro que ele almejava?
O que os inimigos da sociedade que criou a maravilhosa copiadora universal tentam, com slogans como "pirataria é roubo", é manipular a opinião pública de modo a fazer parecer que o uso desse avanço tecnológico é condenável. Exceto quando eles mesmos o usam, claro.
Roubar é subtrair sem permissão um objeto de quem o tinha à disposição. Copiar não é roubo, mesmo que seja ilegal, pois o item original continua tão disponível quanto antes. Por isso mesmo falar em propriedade de idéias e outras expressões intelectuais não faz o menor sentido. Copiar adiciona, não subtrai; a multiplicação propicia o compartilhar, tão fundamental para a vida em sociedade, sem a necessidade de dividir.
A mentira dos "prejuízos da pirataria" está baseada na suposição equivocada de que cada cópia não autorizada (que chamam indevidamente de cópia pirata), caso evitada, geraria mais uma venda. Qualquer pessoa que, alguma vez na vida, decidiu não fazer uma compra depois de pensar melhor, pesquisar mais ou mesmo experimentar um produto sabe que não é bem assim.
Tem ainda a mentira da "geração de empregos". Como é que gera mais emprego copiar CD numa empresa que utiliza processos industriais automatizados para imprimir milhões de cópias de um programa que já está pronto do que num fundo de quintal que utiliza processos manuais para copiar o mesmo programa já pronto?
"Mas não é o emprego de copiar, é o de vender e de criar outros produtos", vem a resposta. Ah, claro. É essencial dar emprego formal pro "empreendedor autônomo" que faz a venda camelando na rua escondido da polícia (por força da legislação injusta vigente), pra que se torne um engravatado que chega ao cliente acompanhado da polícia, como incentivo (por força da legislação injusta vigente) para a compra.
Quanto a criar... É impressionante que o pessoal que diz isso nem fica vermelho. Alguém acredita mesmo que, deixando os olhos da cara e os dentes de ouro na revendedora de licenças de software estrangeiro aqui do Brasil, a fadinha dos olhos e dos dentes vai colocar alguma moedinha embaixo do travesseiro de algum desenvolvedor de software aqui no Brasil? Na verdade, vem ratinho e leva os olhos e os dentes lá pra fora, e traz de volta a tabela de preços atualizada, incluindo as promoções e descontos da "primeira dose grátis". Só não vê quem não quer. Ou talvez quem tenha deixado os olhos na revendedora.
"Mas artistas e desenvolvedores de software não podem viver de vento!" Essa é talvez a mentira mais poderosa, porque ainda tem muita gente que acredita que quem ganha dinheiro com venda de CD é o músico; com venda de livro, o escritor; com venda de software, o programador. Aah, a inocência! Salvo raras exceções, quem ganha dinheiro com a venda do CD é quem prensa e vende o CD: a gravadora; com a venda do livro, quem imprime e vende o livro: a editora; com venda de software de prateleira, ninguém. Sim, porque não vendem o software, vendem só a permissão de uso do software, permissão necessária apenas por força da legislação injusta vigente.
Músico ganha dinheiro fazendo show, não vendendo CD. Ao contrário do que pregam as desinteressadíssimas gravadoras, publicar a música na Internet só faz aumentar os ganhos do músico, pois aí mais gente vai ao show pra apreciar o talento do sujeito ao executar suas peças. E mais gente compra o CD na saída do show, pra ouvir as músicas de novo.
Empresa de software também ganha dinheiro mostrando seu talento, dando show. Segundo a ABES, menos de 1% do faturamento mundial da indústria de TI provém do comércio de (licenças de) software, enquanto por serviços de TI, incluindo aí talentos como desenvolvimento por encomenda, suporte e treinamento, fatura-se mais de 40 vezes mais.
Da mesma forma que com música, faz sentido o desenvolvimento e o comércio em torno do Software Livre: quem presta o melhor serviço atrai mais público pagante, mesmo que (ou especialmente quando) o software esteja disponível na Internet para quem quiser experimentar, executar, estudar, modificar, copiar e publicar.
Quem faz pão gostoso ou roupa bonita não ia deixar de ter clientes interessados em pagar por pão fresquinho e modelitos exclusivos só porque existe uma máquina capaz de copiar o pão e a moda de ontem.
Quem copia não está subtraindo nada de ninguém; pelo contrário, está divulgando o bom trabalho já feito, propiciando a quem de fato trabalha e tem talento mais clientes pagantes.
Mas e os intermediários que ainda exploram tanto os artistas quanto os clientes? Bom... Eles vão continuar tentando nos enganar para manter seus privilégios, às nossas custas. Até quando vamos deixar?
Copyright 2008 Alexandre Oliva
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