Preto no Branco
Alexandre Oliva
Publicado na décima-oitava edição, de setembro de 2010, da Revista Espírito Livre.
Não escondo de ninguém que sou partidário do Movimento Software Livre, um movimento social que defende liberdades essenciais para usuários de software, combatendo um sistema social injusto de desrespeito, controle e opressão dos usuários por desenvolvedores e distribuidores. Desencorajamos o uso, a oferta e a recomendação de software privativo das liberdades essenciais, inclusive daquele que, enganosamente, tenta se fazer passar por software que as respeita. A prática do Open Core, também chamado Fauxpen Source, é condenada até por lideranças da Iniciativa Open Source, mas tem passado despercebida (escondida?) e relevada na maior parte das distribuições de Linux e de GNU/Linux.
Valores binários
É discutível se justiça, opressão e liberdade são ou não valores binários, ou mesmo vetores binários.
De um lado, liberdade condicional não é liberdade, é um eufemismo para um tipo de controle; quando há opressão, há opressor e oprimido, não importa a gravidade da opressão; uma pequena injustiça é suficiente para não se fazer jus à qualificação de justo.
De outro, existem movimentos por sociedades mais livres, menos oprimidas, mais justas, assim como não faltam exemplos de interesses e posições contrários.
O que nunca vi foi movimento social que almejasse menos que o máximo possível de justiça ou liberdade, ou opressão maior que zero, em pelo menos uma de suas muitas dimensões.
Por isso mesmo, quem não quer ver solução para o problema apela para desqualificações como radicalismo ou fundamentalismo. Quem sequer vê o problema frequentemente as ecoa, supondo-se razoável, tolerante e pragmático. Tampouco vê que com isso alimenta a tolerância à injustiça, ao subjugo e ao controle, o que não é razoável.
Códigos binários
Até o Movimento Software Livre lançar luz sobre a questão das liberdades essenciais aos usuários de software, todos os gatos eram pardos. Com fontes de luz adequadas, ficou fácil distinguir os programas distribuídos apenas na forma de zero (preto) e um (branco), binário executável e inescrutável, daqueles com todo o colorido do código fonte.
Muitas outras formas de cercear as liberdades essenciais têm sido usadas: no campo tecnológico, travas anti-cópia e tivoização; no jurídico, licenças e contratos restritivos; no econômico, ameaças através de patentes induzindo à aceitação de tais restrições.
A mais comum continua sendo a negação de acesso ao código fonte, combinada ou não com licenças restritivas. É tão comum que está presente até mesmo na distribuição de software mais frequentemente associada ao Software Livre: o Linux. Quando escrevo distribuição de Linux, refiro-me àquele software gentilmente publicado e mantido por Linus Torvalds desde 1991. Sabe?, aquele que “infelizmente, sozinho, não leva a lugar algum”, conforme o anúncio de sua primeira versão pública, pois “para obter um sistema funcional você precisa de uma shell, compiladores, uma biblioteca etc". Linus esclarece: “a maior parte das ferramentas usadas com linux são software GNU”, e completa: “essas ferramentas não estão na distribuição --- pergunte-me (ou ao GNU) para mais informação.”
Linux não era Software Livre em 1991: sua licença não permitia distribuição comercial. Em 1992, passou a ser licenciado integralmente sob a GNU GPL, mas distribuições de GNU/Linux não tardaram a incluir programas privativos. Em 1996, Linus incorporou componentes privativos à sua própria distribuição de Linux, e não deixou de fazê-lo até hoje.
São programas tidos como independentes, executados em processadores periféricos, distribuídos sem código fonte e, em sua maioria, sob licenças restritivas. Não cabe aqui discutir se é válida a suposta brecha jurídica utilizada para incluir esses componentes num programa com contribuições de muitos desenvolvedores licenciadas sob a GNU GPL.
O problema é que esses componentes de software, que chamamos de blobs, roubam do usuário o controle sobre seu computador, como faz qualquer software privativo, com o agravante de que, por funcionarem em processadores periféricos, não ficam sujeitos aos limites estabelecidos pelo sistema operacional para programas convencionais.
Mesmo assim, já houve muito esforço para fazer essa injustiça parecer aceitável, e até de torná-la menos aparente, disfarçando de código fonte esses programas ofertados apenas de forma binária, em longas sequências de números. Mais recentemente, o disfarce caiu, e os programas têm sido movidos para fora do código dos drivers, que agora “apenas” exigem que o usuário mantenha esses programas disponíveis.
É certo que há componentes de hardware que se recusam a funcionar sem as instruções presentes nesses programas privativos. Não há razão legítima para que seus fornecedores neguem aos usuários as liberdades essenciais. Todas as razões normalmente elencadas são prejudiciais ao usuário: desde impedi-lo de utilizar todo o potencial do dispositivo, para diferenciação de preços ou policiamento, até a manutenção de segredos para restringir a concorrência tão benéfica ao consumidor. Só não vê quem não quer, ou quem não percebe que está sendo enganado.
Open Core
Chama-se Open Core a prática de oferecer um programa razoavelmente funcional como Software Livre, para atrair usuários e colaboradores, oferecendo funcionalidades adicionais somente aos que aceitarem condições privativas de liberdades essenciais. Normalmente é usada por empresas que querem lucrar com a venda das versões privativas, mas não há razão para desconsiderar outras vantagens que um fornecedor de software possa almejar, como popularidade e contribuições a mais.
Foi documentada originalmente como estratégia de negócio alternativa à venda de serviços ou de permissões adicionais. Não é apenas o Movimento Software Livre que vê e denuncia que Open Core é software privativo com uma isca Livre. Embora a Iniciativa Open Source não tome posição oficial, alguns de seus diretores têm afirmado que Open Core “nada tem a ver com Open Source”, “faz mal”, “é uma jogada com Liberdade de Software”, “uma isca para o mesmo modelo de aprisionamento, esperando que você não perceba”. Até analistas de mercado veem através da cortina de fumaça e denunciam que com Open Core “você licencia uma solução privativa”, “é terminologia co-optada”, “nada de particularmente inovador”, “o rei do Open Core está nu”.
Por isso me surpreende que tanta gente feche os olhos ante a escandalosa nudez do rei do Open Core: Linus Torvalds. Sua distribuição de Linux inclui incondicionalmente código sem fontes e sob licenças restritivas, que ativam funcionalidades adicionais de controlar alguns cartões de rede, de vídeo e de som. Será que se fazem cegos porque Linus sequer oferece o Core Livre, ou são tão dependentes das funcionalidades adicionais que preferem não ver o problema? Em terra de cegos, quem tem um olho é rei, mesmo que não consiga ver muito longe.
E, pelo jeito, não vê muito longe, mesmo! Se visse, não se faria cúmplice dos fornecedores desses componentes, que mantêm seus súditos cegos e controlados. Veria que isso é uma injustiça cada vez mais comum, em parte graças a sua cumplicidade e liderança. Que viver em perfeita harmonia, como cantaram o branco Paul McCartney e o cego negro Stevie Wonder, é possível quando aprendemos a dar um ao outro o que necessitamos para viver. Isto é, quando não há opressor e oprimido, feitor e escravo, agressor e vítima. A justiça, embora também cega, vê a diferença entre o bem e o mal: percebe e não tolera a opressão. Fechar os olhos à injustiça e à opressão não é tolerância, é cumplicidade.
Solução Livre
Partidários do Movimento Software Livre, com os dois olhos atentos à injustiça social do software privativo, mantemos o Linux limpo e Livre, sob o nome Linux-libre, dando companhia ao mascote-mor GNU com um simpático pinguim azul chamado Freedo, sempre recém-saído do banho.
Fugindo do modelo Open Core da imensa maioria das distribuição de GNU/Linux, que oferecem funcionalidades adicionais através dos componentes privativos do Linux e outros adicionados por elas mesmas, também mantemos e recomendamos diversas distribuições Livres de GNU/Linux-libre. Destaco pessoalmente a primeira da história, Ututo; a estabilíssima gNewSense e a amigável e atual Trisquel, mas para atender a todos os gostos vale mencionar as também consolidadas BLAG, Drágora, dyne:bolic, Musix, Venenux, as possíveis futuras entrantes Amagi, DelphOS, GNU+Linux from Source Code, NeonatoX, Parábola, RawGNU, RMS e Tlamaki. Kongoni deu uma escorregada numa transição de mantenedor, mas aparentemente já retornou ao caminho da liberdade.
Além de distribuir somente Software Livre, evitamos induzir usuários ao erro, como fazem tantas distribuições ao sugerir a instalação de software privativo. Tanto os nossos binários quanto os nossos fontes devem ser fontes de liberdade, não de armadilhas e aprisionamento. Nada de contratos com letras miúdas, surpresas desagradáveis, exceções arbitrárias ou segredos obscuros. É tudo às claras, para todo mundo ver e participar. Preto no branco, como deve ser.
Copyright 2010 Alexandre Oliva
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