Hoje a comunidade de Software Livre no Brasil alcançou mais uma vitória: a suspenção (sic) do pregão presencial de compra de mais de R$40 mi em licenças de Microsoft Office 2007.
Ganhamos uma semana para desconstruir a justificativa, que por sinal a Receita Federal não publicou junto ao edital, no site, mas já apareceu na Internet.
Várias coisas me chamaram a atenção nessa justificativa.
Primeiro, a confusão intencional entre software gratuito e Software Livre. Os termos estão usados corretamente, mas de forma que dá a impressão de que Software Livre é gratuito e vice-versa. Muito bem feitinho, tem até gente que cai nessa!
Segundo, a longa argumentação sobre Linux como sistema operacional. Fora a confusão terminológica (Linux é só um núcleo, GNU+Linux ou GNU/Linux é a combinação que dá um sistema operacional completo), a presença dessa linha argumentativa só se justifica com a intenção de, mais uma vez, confundir. O pregão é sobre suíte de escritório, não é sobre sistema operacional. Não tem nada que argumentar se um sistema operacional sobre o qual uma aplicação que eles querem comprar não roda é um sistema operacional de nicho ou não. A argumentação de que GNU/Linux é um sistema operacional de nicho só serve para depois dar um salto sem qualquer base em argumentos lógicos (sofisma ou falácia?) para concluir que BROffice.org é também uma aplicação de nicho. Eu não queria nem entrar no mérito do argumento, mas vale apontar que as grandes barreiras à adoção tanto do GNU/Linux quanto do BROffice.org, que levam à adoção lenta apontada pela justificativa, são incompatibilidades e desvios de padrões abertos livres introduzidos intencionalmente pelo fabricante monopolista. Uma vez mais, um argumento bem construído e convincente para um leitor descuidado, mas não menos falso. Ao contrário do Microsoft Office, BROffice.org roda em GNU/Linux tão bem quanto em Microsoft Windows. Não faz sentido trazer GNU/Linux para o debate como forma de desqualificar BROffice.org, pois apenas demonstra mais uma limitação do produto pelo qual se deseja desperdiçar dinheiro público em troca de licenças restritivas de uso. É um tiro pela culatra.
Terceiro, o texto apresenta argumentos fortíssimos para justificar a adoção de padrões abertos livres, ao invés de aumentar a dependência tecnológica em um modelo econômico que exige atualizações constantes e obsolescência programada para funcionar:
Talvez haja um otimismo exagerado na idéia de que o pacote MS-Office seja um produto estático à espera de um bom conversor. Pelo contrário: ele evolui o tempo todo e a própria lógica sugere que, por maiores que sejam os esforços envidados pelos entusiastas do software livre, qualquer conversor estará, por definição, ultrapassado já no seu lançamento.
Em outras palavras, é provável que nunca se chegue a um conversor minimamente razoável, mesmo porque a Microsoft, dona do MS-Office, com certeza vai trabalhar cada vez mais para ampliar seus recursos, dotá-lo de novas funcionalidades e melhorar ainda mais suas características. E o que leva a Microsoft agir assim não é o propósito de sabotar o software livre, mas sim uma filosofia de seu próprio fundador, que desde sempre teve um lema: “torne seu produto obsoleto”. Ou seja, a inovação do MS-Office é um imperativo para continuar vendendo esse produto, independentemente de existir ou não um concorrente à altura.
Portanto, não soa sensata a idéia de um conversor, pelo simples fato de que ninguém sabe ao certo como serão as próximas versões de programas da Microsoft.
O argumento de que incompatibilidades sejam necessárias à evolução e portanto inviabilizem conversores é falacioso. É principalmente porque os formatos de codificação de informação da Microsoft são proprietários e secretos que conversores são tão difíceis e demorados para criar. A Microsoft se recusa a participar da evolução de padrões abertos livres porque isso lhe tiraria a dependência exclusiva, o monopólio que se acostumou a explorar. Apresentar essa dependência exclusiva como se fosse uma vantagem do Microsoft Office é outro tiro pela culatra.
O texto induz o leitor a esquecer várias justificativas fortes e plausíveis para decisões de cunho social ou político:
Em tese, só existiriam duas razões para justificar que a Receita Federal viesse a mudar a tecnologia atualmente em uso: vantagens econômicas ou vantagens tecnológicas.
Será que a soberania do país não vale nada? Colocar os computadores da Receita Federal sob controle total de uma empresa estrangeira, não necessariamente comprometida com nossos interesses nacionais, é uma razão que não merece nem mesmo consideração?
Adicionalmente, o texto restringe o escopo das vantagens econômicas e tecnológicas analisadas ao pagamento ou não de licenças e à funcionalidade atual do software, desconsiderando as diferenças para desenvolvimento econômico e tecnológico entre (i) pagar por licenças de uso de uma versão específica do software, cujos royalties são todos enviados para o exterior, e (ii) pagar por serviços de desenvolvimento, treinamento, suporte, etc, para empresas sediadas no Brasil, desenvolvendo tecnologia no Brasil, pagando impostos e salários de trabalhadores no Brasil, ainda que parte de uma comunidade mundial de cooperação.
Quando fala de supostas vantagens tecnológicas do Microsoft Office, o documento o faz citando comparações de versões obsoletas do BROffice.org.
Quando fala de supostas vantagens econômicas do Microsoft Office, conta o custo de saída do software proprietário como se fosse custo de entrada no Software Livre: esquece de contar custos passados e futuros, em função de obrigações incorridas por escolhas passadas, do lado proprietário da balança, tornando a justificativa toda uma versão elaborada de "um erro justifica o outro".
Se forem contabilizados todo os gastos diretos passados em licenças, treinamento, e gastos futuros em novas licenças, re-treinamento para atualizações, e ainda os custos de conversão de arquivos para outros formatos, no momento em que finalmente se tome a decisão de pagar a conta acumulada em função da adoção de um padrão proprietário, a balança vai sem sombra de dúvida mostrar que a liberdade pesa menos.
Portanto fica claro que, mesmo que dar o passo para a liberdade possa custar mais no instante em que se tome a decisão, no longo prazo não há como justificar gastos que se traduzem em dependência e ainda mais obrigações de gastos futuras. Se, contabilizando gastos passados, a liberdade pesa menos, fica claro que, no longo prazo, mesmo desprezando gastos passados, a liberdade é um melhor investimento.
Finalmente, voltando ao parágrafo que comecei a citar acima, fica patente e declarado que a Receita Federal não podia sequer considerar usar MS-Windows XP ou Vista, quanto mais aplicações exclusivas para esses sistemas operacionais. Diz a justificativa:
Em tese, só existiriam duas razões para justificar que a Receita Federal viesse a mudar a tecnologia atualmente em uso: vantagens econômicas ou vantagens tecnológicas. Qualquer outro motivo não parece fazer sentido, inclusive porque a Receita é uma área crítica para o Governo e sua funcionalidade não pode ser posta em risco sob nenhuma circunstância.
Por ser muito visível, a Receita Federal tem uma forte necessidade de preservação de imagem. Qualquer erro ou interrupção do processamento pode pôr em risco a própria imagem do Governo Federal. Por isso, é de todo desaconselhável qualquer iniciativa que não seja solidamente embasada e exaustivamente testada.
O problema começou na sexta-feira (24/08) e durou até a tarde de sábado (25/08). Neste período, alguns usuários incorretamente falharam no processo de validação, o que os impediu que usar alguns recursos
No sábado, usuários se enfureceram porque a falha os impedia de trabalhar – pelo menos um deles disse que era um desenvolvedor e não pôde acessar a atualização do DirectX porque sua máquina havia sido incorretamente marcada – ou jogar. Outros questionaram por que haviam sido efetivamente marcados como piratas.
Volto ao texto da Receita:
sua funcionalidade não pode ser posta em risco sob nenhuma circunstância
Enquanto a Receita Federal não tiver controle absoluto sobre todas as aplicações que roda, a funcionalidade está em risco. Não importa quanto tenha testado o Software: só o fabricante do software proprietário sabe o que seu software faz em condições que a Receita Federal nem imaginaria que poderia precisar testar. Só com Software Livre em todos os níveis e em todas as aplicações críticas a Receita Federal pode garantir o atendimento desse requisito, saber o que faz o software que ela utiliza, e evitar o risco de que interesses ou erros de terceiros ponham "em risco a própria imagem do Governo Federal".
Chamar um argumento como esses, que buscava justificar a adoção de um software proprietário, de tiro pela culatra é um tremendo eufemismo. Está mais pra bala de canhão atirada pra cima, que afunda o próprio navio. Ou praquele sistema operacional proprietário que deu tela azul na hora errada (tem hora certa?) e acabou afundando aquele submarino nuclear, sabe?
Até blogo...
Last update: 2007-09-01 (Rev 2057)