Alexandre Oliva <lxoliva@fsfla.org>
Publicado na décima-sétima edição, de agosto de 2010, da Revista Espírito Livre.
Ontem foi dia dos pais. Ganhei um presentão de minha filha Larissa e quero muito compartilhar com vocês, porque me deu uma baita esperança no futuro, nas próximas gerações, apesar dos estragos que as últimas gerações têm feito. Larissa, pra quem não conheceu em algum FISL, é uma menina que ganhou um GNU de pelúcia antes mesmo de nascer; é usuária e fã de Software Livre, como o GCompris, desde a mais tenra infância; posou de Branca de Neve para ilustrar uma palestra sobre a GPLv3; com o Freedo que ganhou, me faz quase morrer de saudades quando viajo para palestrar sobre o Linux-libre. Foi para ela que comecei a traduzir o livro infantil “O Porco e a Caixa”, de MCM, do qual imprimi centenas de exemplares há um par de anos. Ela entendeu direitinho!
A fábula conta a história de um porco que encontrou uma caixa mágica em sua horta e descobriu que a caixa copiava de tudo, mas, egoísta e mesquinho, não queria compartilhar a dádiva com mais ninguém. Decidiu aceitar pagamentos, mas impunha restrições aos usos das cópias. Assim como os abusos de direitos autorais, suas restrições se mostraram muito mais daninhas do que ele mesmo considerava razoável. Por fim, aprendeu que compartilhar e respeitar era muito melhor para todos. Desde então, basta lembrar do Sr Leitão para conter rompantes de egoísmo que às vezes tomam conta das crianças.
E quanto ao presente? Aconteceu que recebemos neste fim de semana a visita de parentes, um deles prisioneiro de CAD e sistema operacional privativos. Um primo foi mostrar à Larissa alguns jogos que tinha no computador portátil que trouxeram. Resultado:
– Papai, podemos ter esse jogo no nosso computador também?
Não, não; calma! Não foi esse o presente, não! O presente começou vendo a carinha dela quando expliquei que não podíamos copiar o jogo, ao contrário do que sempre fizemos quando os amiguinhos dela vieram nos visitar e gostaram do GCompris. Quando falei que, se o copiássemos, poderíamos até ir presos, ela ficou ainda mais surpresa, e perguntou por quê.
Expliquei que as pessoas que vendiam esse programa se comportavam como o Sr Leitão e ficavam dizendo o que as pessoas podiam ou não fazer com as cópias que vendiam, e que a lei, infelizmente, estava do lado deles, porque muita gente acreditava que tinha que ser assim. Ela pensou um pouco e arriscou:
– Papai, a gente pode comprar esse programa?
Não, o presente ainda não foi esse. Expliquei para ela que o trabalho mais importante da vida do papai era tentar mostrar pra todo mundo que essas leis não são justas, que há jeitos melhores de fazer as coisas, que compartilhar é bom para todos, e que toda vez que a gente compra alguma coisa de alguém que faz que nem o Sr Leitão, a gente está dizendo pra ele que desse jeito está bom para nós.
Perguntei se era isso que a gente quer dizer pra elas, se ela queria que a gente comprasse o tal programa. Perguntei e prendi a respiração, ansioso pela resposta. Ela pensou, pensou, e quando eu já começava a ficar roxo, perguntou:
– Papai, será que a gente pode procurar um jogo igual na Internet?
Ufa! Sei que sou coruja, mas não é sem razão, é? Claro, filhinha querida, vamos procurar, sim! Mas antes, precisava avisar que, igualzinho, dificilmente a gente encontraria, mas que, dependendo, poderíamos modificar o que encontrássemos, ou até fazer um novo.
Cá entre nós, quase todas as atividades já estavam presentes no GCompris, muito mais completas, ainda que sob disfarces diferentes. Mas igual, mesmo, ninguém poderia fazer, pois exigiria copiar os personagens responsáveis pelo forte apelo visual infantil daqueles jogos de montar bolos e de descobrir a combinação secreta para formar o rosto de um personagem escondido e, para copiar os personagens, precisaria de autorização de um Sr Leitão, né?
Já havíamos encontrado um jogo de montar bolos que rodava direitinho no Gnash, mas faltavam os controles para avançar e retroceder a esteira de montagem do bolo: ela avançava sozinha, rápido demais.
– Dá pra gente mudar isso, papai?
Difícil, filhinha. Praticamente todos os jogos em Flash que a gente encontra na Internet, apesar de podermos brincar, são quase tão restritos quanto os do computador do primo. O Sr Leitão que os fez não deixa a gente mudar o jogo, só podemos jogar do jeito que ele escolheu. Uma pena, né?
Mas não se preocupe, filhinha. Se a gente não conseguir encontrar um do jeito que a gente quer, a gente pode fazer o nosso. Papai e mamãe sabem ler e escrever várias línguas que os computadores entendem, e a gente pode ensinar pra você se você quiser. Afinal, você já está aprendendo a ler e escrever, e está curiosa para aprender outras línguas! Conseguir dizer pro computador o que você quer que ele faça é cada vez mais importante. Todo mundo deveria aprender, do mesmo jeito que todo mundo precisa aprender a ler e escrever.
Mas, filhinha, fazer um programa desses, inteirinho, dá um trabalhão, e precisaria aprender um monte de coisas que o papai também não sabe. Felizmente, a gente tem vários outros programas que fazem coisas parecidas com o que a gente quer, como o GCompris, e o pessoal que o fez não é egoísta que nem o Sr Leitão. Eles deixam a gente copiar e também mudar o programa, e ficariam até contentes se a gente melhorasse o programa e compartilhasse com eles e com todo mundo. E eles são tão legais que publicaram o programa de uma maneira muito especial: com copyleft!
– Que que é isso, papai?
É um jeito de dizer pras outras pessoas que elas podem rodar o programa, ver as instruções que a gente usa pra ensinar o computador o que fazer, mudar essas instruções e copiar para outros, de maneira que eles também possam fazer todas essas coisas. Outras formas de copiar para outros, que não os respeitariam, continuam proibidas pela lei.
E sabe quem inventou o copyleft, filhinha? Foi tio Richard!
O sorriso que ela deu nessa hora foi o presente mais especial que já ganhei. Nem o sorriso que esse mesmo Richard deu, quando viu pela primeira vez a fantasia do GNU, foi tão emocionante. Ganhar um sorriso tão especial, de dia dos pais, fica até parecendo final de propaganda de cartão de crédito: não tem preço. Mas, filhinha, você entendeu que o importante não é não ter preço, mas sim respeitar as liberdades, nossas e dos outros, né?
Copyright 2010 Alexandre Oliva
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Last update: 2010-08-31 (Rev 7276)