Já não havia mais combustível nos postos ontem à noitinha. O trânsito reduzido e as luzes dos postos apagadas já começavam a dar a sensação de cidade fantasma, reforçada hoje. Caminhoneir@s paralisados nas estradas do país recusam-se a levar combustível, alimentos e produtos em geral. Aeroportos já param, mercados já têm prateleiras vazias como imagens de propagandas contra o governo venezuelano. Forças armadas rumam aos bloqueios nas estradas (talvez não tenham combustível para chegar), como se a obstrução fosse o problema, e não a recusa em pagar para trabalhar.
Não vou agora trazer minha preocupação com forças armadas se deslocando para os pontos críticos do transporte terrestre, no clima golpista que vivemos desde 2016. Tampouco quero discutir quem está por trás dessa mobilização dos caminhoneiros, ora aderida por outras categorias que trabalham no transporte rodoviário, como perueir@s e motoboys (e motogirls).
Escrevo porque sinto cheiro de bomba inflacionária no ar. Combustíveis e energia têm sido reajustados impunemente desde o golpe. Não há repasse porque não há espaço para isso: com consumidores sem dinheiro e empresários sem disposição para investir, justamente pela falta de perspectiva, repassar os reajustes é dar tiro no pé. É por isso que não tem havido inflação.
Mas a pressão está aí: 50%, 70% de reajustes de combustíveis acumulados têm sido absorvidos primariamente por aqueles que trabalham com transportes rodoviários, não por vontade própria mas por absoluta falta de opção.
Não é uma situação sustentável. Paciência e tolerância com uma situação insustentável têm limites, e parece que o limite chegou. Houvesse, em algum momento, espaço para repasse dos reajustes dos insumos energéticos, teriam ocorrido e aliviado a pressão dos reajustes absorvidos e represados. Mas a desastrosa situação econômica não permitiu. Então, chegado o limite, vem o basta, porque ninguém é obrigado a trabalhar de graça, ou mesmo a pagar para trabalhar. Seja trabalhador, seja empresário. Pelo menos para o empresário, é parte do risco, mas se o negócio não for viável, vai parar de funcionar. Se o ramo todo se mostrar inviável, o serviço deixará de ser prestado.
As medidas de desobstrução das estradas nada fazem para tornar as operações de transporte rodoviário novamente viáveis economicamente. Quem está decidido a parar de pagar para trabalhar não vai ficar mais animado e voltar só porque militares dispersaram as concentrações. A inviabilidade econômica permanece.
Pela lei da oferta e da procura, se muitos prestadores desse serviço desistirem, poucos remanescentes seriam então capazes de aumentar seus preços por conta da escassez da oferta, e retomar o trabalho de forma economicamente sustentável. Mas não me parece que o problema seja abundância de oferta: os atuais prestadores já haveriam repassado os reajustes se pudessem. O problema é na ponta, no consumidor final, que não absorveria os reajustes na atual conjuntura.
Por isso vejo que uma bomba inflacionária está armada. Talvez o atual governo golpista, que tanto se orgulha da baixa inflação, tenha calculado mal o tempo da crise: planejavam que a bomba explodisse nas mãos já do próximo governo, mas essas forças econômicas dos transportes rodoviários, mesmo que tenham apoiado o golpe, já não conseguem mais suportar as consequências da política de gestão dos preços de energia. Não devem ser as únicas forças econômicas nessa situação: muitas outras greves e manifestações já pipocam. Vem mais por aí.
Mas nada disso vai desarmar a bomba inflacionária. Havendo qualquer melhoria econômica conjuntural de um outro governo (se houver eleição) que permita que os reajustes represados sejam repassados, eles serão, e aí os preços subirão, e os salários serão reajustados, e os preços novamente serão reajustados, por conta de nossa cultura inflacionária, e rapidamente estaremos novamente em situação de descontrole inflacionário.
Animador, não? Será que estou enxergando demais, ou deixando de ver algo relevante?