Sempre tive esse palpite de que não teria uma vida muito longa. Atribuía à obesidade. Tendo nascido durante a ditadura mas recebido o direito de votar na primeira eleição direta para presidente em décadas, nunca imaginei que fosse morrer lutando por democracia, como vem se desenhando o futuro imediato.
Fui privilegiado a vida inteira. Nasci em família branca, de classe média-alta, estudei em escolas da elite curitibana, tive acesso a computadores e me interessei muito por eles desde cedo, estudei e me dediquei muito para alcançar habilidades raras que têm me propiciado uma vida independente e confortável. Casei, tivemos uma filha, sinto-me querido pela família de minha companheira.
Nada disso me coloca em grupos alvo de exclusão, discriminação ou perseguição, muito pelo contrário, sou o típico privilegiado social, talvez com exceção da nerdice e da gordura. Apesar dessas características indesejáveis mais evidentes, continuo sendo convidado a palestrar com frequência sobre os temas que creio relevantes. Até agora, nada tinha de que reclamar. Mas, de um momento para outro, minha vida ficou em perigo, pois desde domingo sei que estou na mira do capetão.
Acredito que justiça social passa por redução das desigualdades, por oportunidades iguais para que esforço e mérito individuais prevaleçam sobre privilégio herdado. Desde que comecei a pensar no assunto, ainda jovem na decadente ditadura que começara antes de eu nascer, segui uma linha de pensamento de esquerda, para desespero de meus familiares mais conservadores. Só isso já bastaria para me enquadrar como membro da gangue dos vermelhos que o capetão pretende exterminar, expulsando-nos do país ou jogando-nos para apodrecer no xilindró.
Conheci o Software Livre, a causa que me escolheu, quando me mudei de Curitiba para estudar em Campinas. Na universidade, tomei o primeiro contato com programas de computador feitos não para vigiar e controlar os usuários, como faz a maioria dos programas usados hoje em dia, mas para respeitar e defender liberdades e direitos deles. Poucos anos depois, tive o privilégio de receber o fundador e maior pensador dessa linha filosófica no mundo, hoje um grande amigo meu. Militamos juntos nessa causa, ameaçando, ou ao menos tentando ameaçar os grandes monopólios das indústrias de software, de hardware e de serviços através da grande rede, que pretendem transformar o seu computador, de mesa ou de bolso, numa ferramenta que, ao invés de lhe servir, serve àqueles que desejam vigiá-lo, controlá-lo e conhecê-lo para influenciá-lo melhor. Apesar do nome, não se trata de um movimento tecnológico; sou ativista de um movimento social e político, outro grupo que o capetão pretende perseguir e exterminar.
Graças aos pensamentos desenvolvidos nessa empreitada e ao acesso a ferramentas robustas de criptografia, anonimato, comunicação resistente a censura e de segurança contra controle remoto, tenho rodado o mundo ensinando pessoas a, entre outras coisas, enfrentar tiranias. Finalmente estou prestes a ter oportunidade de colocá-las todas em prática, pela minha própria integridade física!
O problema é que ficou tarde demais. Crendo viver sob uma democracia, em que não se duvidava da liberdade de expressão e de pensamento, já me posicionei contra as propostas do capetão para seu possível futuro governo tirano. Caso prevaleça seu discurso de ódio, do domingo passado e de outras ocasiões, não devo viver muito mais.
É que não me parece justo eu me valer do meu privilégio econômico para me exilar e deixar o enfrentamento do monstro para outros, menos privilegiados, mas igualmente inocentes (ou culpados por omissão?) quanto eu.
Tampouco quero viver, nem me parece viável eu conseguir viver, sem expressar o que penso, sem liberdade, sem respeito à diferença, sem civilidade. Sou de uma subespécie que não costuma sobreviver em cativeiro.
Pode até ser que eu sobreviva à tortura (talvez por não resistir e acabar dizendo o que me exigissem), não apodreça no xilindró e tenha a sorte e o privilégio de viver para conhecer meus futuros netos. Ao contrário de meu avô, que veio ao Brasil derrotado, fugitivo de guerra, mas pouco viveu após o nascimento de seu primeiro neto. Ao contrário das tantas vítimas da ditadura anterior, ditadura que só experimentei através dos ingênuos sentidos de uma criança, e vítimas que tiveram suas vidas ceifadas pelo ídolo do capetão e por seus semelhantes. Vítimas como as que vêm sendo atacadas e mortas por atuais seguidores do capetão, apavorante amostra do que pode vir por aí, a depender da sua escolha no próximo domingo.
Dói ver a quantidade de gente encantada com esse discurso de ódio. Gente achando que toda essa violência vai ser direcionada só "contra o inimigo": negro, índio, mulher, pobre, gay, ou ainda petista, ativista "terrorista". Que seus eleitores estarão a salvo, ou ao menos mais seguros, quando o (velho) novo regime estiver em pleno vigor.
Nem sou petista! Até simpatizo, mas acho o PT moderado demais. Se tento jogar futebol, fica evidente que tenho duas pernas esquerdas!
Tampouco sou terrorista, mas já disse e escrevi, depois de perguntarem há um tempo o que eu seria em não lembro quantos anos, que achava que seria terrorista. Não porque mudaria minhas práticas, esclareci de imediato, mas porque me parecia que minhas práticas de Software Livre, de combater a vigilância digital por corporações e governos, de buscar garantir a possibilidade de comunicações privadas e controle sobre os próprios dispositivos computacionais, viriam a ser consideradas terrorismo. Quisera eu ter errado na previsão!
Tampouco posso dizer que tenha acertado perfeitamente. Não são as práticas específicas que estão prestes a fazer de mim um terrorista. Nem é minha simpatia pelo PT. É o mero fato de ser um ativista sócio-político, ainda por cima de esquerda radical.
Mas, de verdade, nem isso importa muito. No novo regime, qualquer um que ousar sair da linha, atirar uma pedra, ou mesmo uma bolinha de papel contra o regime, será alvo e se tornará vítima de sua ira e violência. Mesmo que não tenha votado no vermelho. Mesmo que nem tenha votado! Mesmo que tenha votado como você pretende!
Pouco importa a estrela ou sua cor: o ódio é daltônico, e ficam vermelhos a face, os olhos e finalmente as mãos de quem pelo ódio se cega. Irônico, mas previsível, que o ódio ao vermelho acabe se voltando contra quem o odeia.
Você, que foi condicionado a odiar o vermelho e pretende com isso guiar seu voto, se não quiser suas mãos manchadas para sempre com a odiada cor do meu sangue, meu e de muitos outros que ousam pensar diferente, acorde e vote por quem esteve no poder durante mais de década e não nos transformou em ditadura, e não por quem já está nos transformando em ditadura e dando fartas amostras de crimes e corrupção antes mesmo de terminar a eleição.
Se não for por empatia, já que quase certamente porá fim à minha vida, que seja por autopreservação, já que ditaduras não são regimes de muitos amigos.
Se ainda estiver em dúvida, escolha aquele que lhe permitirá mudar de ideia e fazer oposição depois. Há apenas um candidato assim.
E se vencer o capetão, nos vemos em breve do outro lado.
Se houver outro lado...
Até blogo,