Hoje é aniversário de vários amigos muito queridos. Por razões óbvias, entreguei-lhes apenas abraços pandêmicos, de forma virtual.
Foi ao escrever os parabéns que se acendeu uma luz.
Há muito me perturbava a estranha noção de congratular alguém por completar mais uma volta em torno do astro-rei, por continuar aqui no andar térreo. Que mérito poderia haver nisso?
Do meu ponto de vista, de nascido em berço explêndido, jogando o jogo da vida com praticamente todas as configurações em modo fácil, a expectativa de vida para os sobreviventes aos primeiros meses de vida fica bem alta. Por que raios então os "parabéns" para alguém que, muito provavelmente, ainda tem décadas de vida pela frente?
Precisou de uma pandemia em que um pequeno deslize pode ser fatal, de um esforço frenético da ciência para desenvolver vacinas, para eu compreender a posição dos que criaram esse costume de dar parabéns no aniversário. Quando há uma doença que rapidamente transforma pessoas saudáveis em vítimas fatais, sem tratamento nem prevenção efetivos dentro de uma vida que até há pouco se considerava normal, há, sim, mérito em sobreviver mais um ano!
Antes do advento das vacinas, mesmo fora dos períodos das grandes pandemias, o risco de contrair alguma dentre muitas doenças contagiosas e potencialmente fatais na vida cotidiana era, digamos assim, parte significativa da vida cotidiana. Tanto é que, uma vez instituídas campanhas de vacinação em massa, a expectativa de vida mais que dobrou!
Eis que me descobri ainda mais privilegiado nas configurações da vida: vivo num tempo em que há vacinas para muitas das mazelas que afligiam nossos antepassados a ponto de viverem toda a vida com essa aflição de fundo, e, apesar de minhas comorbidades, tenho também a comodidade de enfrentar a maior pandemia da minha geração (espero trabalhando remotamente, com baixíssima exposição. De fato, eu já mal saía de casa antes da pandemia, então não vejo muito mérito na minha sobrevivência.
Mas vejo mérito dentre os que não têm tais privilégios, que saem de casa e enfrentam o risco cotidianamente para me fazer entregas ou para me atender nos mercados onde faço compras regularmente.
Vejo também, graças a esta reflexão, o mérito da sobreviênvia entre aqueles que mesmo antes da pandemia corriam risco cotidiano de vida, especialmente as vítimas favoritas das autoridades mais autoritárias e preconceituosas: pretos e pardos, pobres e favelados. Há ainda as vítimas de violência doméstica, de intolerância de gênero... Tantas são as mazelas sociais que ainda temos de superar...
Para os que jogam o jogo da vida nessas configurações mais difíceis que lhes foram atribuídas, sorte não basta para explicar a sobrevivência. Não que não seja necessária, mas há de haver também muito mérito desses lutadores sobreviventes.
Penso até que lhes devemos mais que parabéns anuais! Não, não estou sugerindo dar-lhes parabéns com maior frequência, mas ajustar as configurações sociais para que aquilo que hoje é privilégio de poucos possa ser condição normal de vida. Releguemos o viver perigosamente para obras de ficção.
Pensar que muitos desses "privilégios" já estão codificados em lei como direitos universais para uma vida com dignidade humana. Em verdade, não nos faltam recursos materiais para implementá-los, falta humanidade aos governantes em suas bolhas de verdadeiros privilégios, infladas pelos gases emanados pelos podres poderes.
Eleições vem aí, mas não bastam. Podemos aproveitar a motivação das eleições para tentar fomentar consciência social e ativismo político, mesmo em tempos de pandemia. Andam muito em falta, mas creio que sejam o caminho para fazer a diferença no combate à selvageria social que tem se instalado.
Até blogo...