Fort-una-se!
Alexandre Oliva
Publicado na vigésima-sexta edição, de maio de 2011, da Revista Espírito Livre.
Lembrei daquele meu amigo que pedia pra completar o ditado: “A União Faz A...? A...?”, e algum desavisado sempre respondia: “Força”, sem saber que ele, gozador que era, queria “A...çúcar”. Dando continuidade ao tema gastronômico da edição passada, em que escrevi sobre churrascarias e vegetarianos, nesta vou abordar o poder das massas, quando unidas, senão num mesmo prato, num mesmo ideal.
Não é de hoje que as pessoas pedem e dão ajuda umas às outras. Quando se faz necessário reunir recursos para uma causa importante ou um desastre humanitário, sempre há doações voluntárias de bens, dinheiro, tempo e esforço. É comum alguém em necessidade ocasional ou tentando levantar fundos para uma obra social unir as forças de pequenas contribuições de pessoas próximas fazendo uma rifa ou uma festa beneficente. Instituições de caridade frequentemente sobrevivem, ainda que com dificuldade, com doações das comunidades que atendem.
É natural do ser humano não só buscar ajuda com seus pares, como também ajudá-los quando necessitam: crianças pequenas, antes mesmo de aprender a falar, já têm o desejo de ajudar o próximo. Esse instinto de ajudar fomenta a união de forças dentro das comunidades, um traço certamente essencial para as sociedades humanas primitivas enfrentarem os perigos e dificuldades da vida.
Somos ao mesmo tempo afortunados de viver numa época em que podemos formar comunidades e cooperar a nível global, com auxílio dos meios de comunicação hoje disponíveis, e desafortunados por esses mesmos meios serem usados como justificativa falaciosa para enrijecer leis que se chocam com esses nossos instintos tão benéficos. Refiro-me à guerra contra o compartilhamento, lançada pelos intermediários que buscam preservar modelos de negócio baseados numa impossível escassez artificial de obras culturais, em alegada defesa aos interesses dos artistas que exploram.
Ora, mas artistas não precisam de monopólios artificiais para conseguir buscar uma justa remuneração por sua obra criativa: a mesma Internet que os intermediários representantes da Idade Mídia tentam “civilizar” tem sido utilizada por diversos artistas que já perceberam que conseguem resultados muito melhores quando dividem seu sucesso com o público, e não com os intermediários que abocanham a quase totalidade dos rendimentos e ainda tratam os fãs como bandidos.
Um artista moderno pode tanto divulgar suas obras livremente e buscar remuneração através de serviços como apresentações públicas, como mercantilizar suas obras via Internet, antes ou depois de produzi-las. Exemplos de músicos e programadores ganhando visibilidade e dinheiro vendendo cópias de suas canções e programas por quanto cada fã estiver disposto a pagar já existem.
Certamente há exemplos de menor sucesso, como escritores publicando um novo capítulo a cada vez que o volume de doações atinge um novo patamar. Talvez a incerteza de que a obra venha a ser completada seja um fator desmotivador importante. Porém há uma série de “TV” de ficção científica, Pioneer One, em que cada novo episódio é filmado com recursos oriundos de doações do público, liberado via BitTorrent. E ainda prestam contas ao público!
Fora isso, há sítios como Flattr, que artistas podem usar para receber doações de fãs satisfeitos, e Kickstarter, em que podem buscar financiamento prévio diretamente de interessados em seus futuros projetos. É aqui que entra o “crowd” do “crowd funding”, um caso particular de “crowd sourcing”: da mesma forma que sítios de compra coletiva têm propiciado vantagens a vendedores e compradores, eles podem aproximar o artista que quer ser pago pelo trabalho criativo do público interessado e disposto a pagar por esse trabalho.
Um fator econômico muito importante é que não há qualquer necessidade, nesse modelo, de o intermediário gastar fortunas com lobistas, advogados e medidas técnicas que só fazem prejudicar os fãs. O artista vende sua obra ao público, recebendo tanto quanto pediu. Assim como não se pode, após uma venda, impor novas condições, restrições ou cobranças ao comprador, a partir do momento em que a obra é vendida dessa forma, o artista, ainda que reconhecido como autor, não pode interferir com os usos da obra que vendeu.
É mais ou menos como já ocorre hoje, quando o artista transfere esse poder para o intermediário midieval, mas nessa proposta, os favorecidos são o artista, que recebe exatamente o valor que pediu, e o público, que não fica sujeito a restrições, não tem de pagar mais por elas, e ainda ganha em poder de escolha.
Falta agora resgatar artistas que já venderam suas almas criativas aos impérios monopolistas midievais e enfrentar os lobbies legislativos anti-democráticos encarregados de expandir esses impérios. Por mais que o movimento pela abolição do direito autoral patrimonial (copyright) ganhe força, extinguir esse privilégio monopolista que nos amarra é complicado, pois há tratados e ameaças de sanções internacionais que os impõem. Porém, nada neles impede que se exija o respeito às liberdades de apreciar, copiar, compartilhar e modificar uma obra como condição para sua publicação, de modo que todas as obras que venham a ser publicadas legalmente sejam, de fato, livre expressão. Esse é um caminho que podemos tentar seguir, unidos.
Afinal, se tantas vezes usamos nossa liberdade individual para escolher unir forças por uma causa comum, benéfica a todos nós, esse é um exemplo em que fazê-lo é indispensável para enfrentar um inimigo comum da sociedade moderna. Torço para que o inimigo não tenha conseguido deixar-nos inertes, eliminando completamente nosso instinto natural de cooperar com o próximo. Quero acreditar que ainda somos capazes de somar nossas forças e fazer valerem os princípios democráticos para construir um futuro menos amargo. Nossa sorte está lançada! Quer fazer parte de um grupo forte? Una-se! É muito massa!
Copyright 2011 Alexandre Oliva
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