Salvem os Hackers!

Alexandre Oliva

Publicado na edição 50 (maio de 2013) da Revista Espírito Livre.

É um sarro como repórteres são atraídos por palestras com “hacker” no título; parecem abelhas rondando copos de refrigerante dietético. Por mais que tentem, não vão encontrar ali nem a “pimenta” nem o açúcar que esperavam. Os patrões desses repórteres acabam “vítimas” da própria campanha de difamação que lançaram contra nós, hackers. Por isso mesmo, nada mais justo que usarmos técnicas de artes marciais para direcionar a força do oponente contra si mesmo, né?

Pois então, a primeira coisa que se esclarece ao “abelhudo” é que hacker não é criminoso virtual; isso é uma distorção para nos demonizar. Hackers são seres curiosos, amantes do conhecimento, da descoberta, da engenhosidade. Ganham pontos entre seus pares não por quanto conseguem extorquir dos outros, mas pelo brilhantismo do conhecimento que compartilham. Por que alguém demonizaria gente assim, que compartilha conhecimento, por vezes através de artifícios engenhosos?

Para entender, basta pensar em diversos hackers perseguidos e demonizados pelas elites ao longo dos tempos: Leonardo da Vinci hackeava suas obras de arte para nelas codificar sua verdadeira posição (não) religiosa; Richard Stallman é frequente vítima de ataques pessoais que pretendem desmerecer e desviar a atenção da sua mensagem de libertação dos usuários, que tanto assusta os dominadores; Os criadores e mantenedores do The Pirate Bay foram processados e condenados à prisão por publicar o equivalente digital a uma lista telefônica; Julian Assange, fundador do Wikileaks, ousa publicar segredos vazados que outros jornais igualmente publicaram mas, ao contrário dos demais, não aceita se calar em face das ameaças de morte, acusações e cortes de fontes de recursos para pagar sua defesa. Jacob Applebaum, desenvolvedor da rede de anonimização TOR que ativistas de direitos humanos usam em todo o mundo para escapar dos bloqueios e da censura a que seus governos tentam sujeitá-los, é sempre barrado pela polícia de fronteira de seu próprio país, que insiste que ele revele suas senhas de criptografia para que acessem os dados em seus computadores; a pressão aumentou depois que ele passou a colaborar com o Wikileaks. Aaron Swartz foi perseguido até a morte, com ameaças de décadas de prisão, por baixar artigos demais de um repositório científico ao qual ele tinha acesso ilimitado; suspeita-se que a pressão tenha advindo também de sua colaboração com Wikileaks.

A rigor, pouco há de novo nisso tudo: historicamente, a elite sempre esteve um passo adiante da população em geral em termos tecnológicos, usando esse passo adiante para dominar e manter controle sobre os demais. Douglas Rushkoff, numa palestra no SWSX 2010 sobre seu livro “Programa ou Serás Programado”, apontou que a “invenção” do alfabeto permitiu a criação de registros históricos escritos, mas o poder de ler e interpretar os textos escritos, via de regra as escrituras sagradas, ficou restrito ao clero. Quando surgiu a imprensa, os livros puderam deixar de ser algo restrito à nobreza, porém era a realeza quem permitia ou não a publicação das obras: tornou-se o novo instrumento de controle do pensamento e portanto do comportamento. Quando chegou a Internet, a rede em que pessoas se conectam através de computadores interligados, passou a ser possível a qualquer um publicar o que bem entendesse. A elite demorou a perceber que essa ferramenta, criada por hackers, poderia se tornar uma nova revolução, mas hoje, governos e grandes empresas se aliam para tentar controlar a Internet, por vezes bloqueando sites para evitar a publicação de certas informações, por vezes filtrando o acesso a informação indesejável à classe dominante, e incansavelmente tentando tirar dos usuários o controle sobre seus computadores: temos uma geração de blogueiros, mas o controle sobre os meios está nas mãos de programadores, ou melhor, daqueles que pagam seus salários. Quem não programa (ou usa um computador que impede a programação) é programado; se crê usuário, mas é usado.

Perdoem-me os não letrados nessa disciplina, mas programar é fundamental! Afinal, ensinamos a ler e escrever não porque todos vão se tornar escritores profissionais, mas porque é uma competência essencial para a comunicação, para a vida em sociedade. O mesmo se pode dizer da aritmética, de outros idiomas. Ora, linguagens de programação, antes de serem “de programação” são linguagens, que crianças se mostram capazes de adquirir e dominar com extrema facilidade. Já imaginou se, ao invés de ficarem limitados a máquinas de escrever com TV digital e som 5.1 e ao que desenvolvedores de aplicativos acharam que seria vantajoso lhes oferecer, pudessem se tornar mais eficientes programando para automatizar suas próprias tarefas repetitivas (coisa que o computador foi criado para fazer)? Por que deveria ser limitado a poucos esse superpoder de evitar a frustração, pela incapacidade de expressar o que desejam (se é que conseguem formular o desejo para si mesmos), pela incapacidade de sequer compreender os códigos que governam o funcionamento de sua própria máquina? Analfabetos algumas vezes têm alguma vaga noção de quanto perdem por não saber ler, mas à classe dominante não interessa que as pessoas tomem ciência de quanto perdem por não poderem controlar seus computadores: assim fica mais fácil monitorarem e controlarem a vida dos dominados através de seus computadores. Incapazes de acessar, compreender e alterar os códigos explícitos na programação dos computadores que controlam parte cada vez maior da realidade à sua volta, que esperança têm essas pessoas de desvendar, compreender e influenciar os códigos e protocolos implícitos nas interações sociais, no estabelecimento e manutenção das estruturas de classes sociais?

Por isso me parece que o caminho para uma sociedade mais justa passa necessariamente pela educação, mas uma educação libertadora, cidadã, ética, de hackers, não uma (con)formação de gado humano. É preciso instigar a curiosidade e o compartilhamento de informações, não os segredos dos códigos fonte e as restrições jurídicas e tecnológicas que se impõem sobre muitos materiais educacionais. Incentivar o questionamento, ao invés de autoritariamente exigir um respeito à suposta autoridade. Mostrar os prazeres do aprender, do pesquisar, do descobrir e do inventar, construindo cada um seu próprio caminho para uma maior diversidade, ao invés de todos decorarem o mesmo conteúdo, seguindo a mesma trilha demarcada até chegarem ao abatedouro.

Escolas devem dar o exemplo: ensinavam a compartilhar lanches e brinquedos levados à aula; por que não livros e programas de computador, que, quando digitais, são compartilhados não por divisão, mas por multiplicação? Por que a escola, ao invés de ensinar valores humanizantes, se vê quase forçada a ensinar que é proibido ajudar ao próximo? Não! Isso está errado! É preciso ensinar a controlar as máquinas, não que elas não podem ser controladas por nós porque seus controles são secretos. Cada vez que um aluno pergunta ao professor e o professor responde “é segredo, não posso lhe ensinar isso”, ou, pior, “não mexa, criatura!”, mata a curiosidade, mata um filhote de hacker antes que ele cresça e “traga problemas”; reforça no estudante o auto-estereótipo de consumidor passivo, não de agente co-criador de ideias e da realidade!

A mensagem sutilmente ditada pelas elites dominantes parece ser “não ouse compreender ou influenciar”: consuma, consuma, consuma, sempre passivamente. Consuma software e computadores do jeito que eles vêm; consuma obras culturais, mas não ouse querer transformá-las, adaptá-las ou remixá-las; consuma os meios de comunicação, mas sempre da forma restrita mais lucrativa para os intermediários; consuma a sociedade do jeito que ela vem; consuma o videogame eleitoral e tenha fé que a urna que nem você nem ninguém pode auditar conte seu voto direitinho, ou, se você for um pouquinho mais cínico, que o último a corromper o processo de totalização (que portanto decide o resultado final) tenha sido o seu candidato favorito. A pseudo-democracia em que vivemos é assim: os debates são fictícios ou repletos de distrações, os eleitos representam os interesses daqueles que financiam suas campanhas (não daqueles que os elegeram), e as informações a que temos acesso através da grande imprensa vem de pouquíssimas agências de notícias com interesses alinhados entre si, ainda que seja publicada em diversos meios para dar uma ilusão de diversidade, o que reforça a aparente veracidade noticiada. É uma prisão para sua mente, Neo!

Para romper as amarras das redes anti-sociais que nos aprisionam, precisamos começar formando hackers livre-pensantes, fomentando sua curiosidade e seu espírito de compartilhamento. Interessados que são, capacitados para compreender e modificar os códigos dos computadores e dos meios de comunicação, terão alguma chance de resgatar o controle sobre eles. Sem essas amarras, com acesso a informação menos parcial, quiçá poderão desvendar os códigos e protocolos das redes anti-sociais e restabelecer a democracia, que, graças à atual tecnologia, poderia até mesmo voltar a ser direta, dispensando intermediários corruptos ou corrompíveis. Como hackers, terão até mesmo o interesse em participar ativamente; tendo resgatado o controle sobre os meios de comunicação e a liberdade de expressão, e mantido a sede de informação e de compartilhamento, poderão tomar decisões informadas e ética. Porque assim somos nós, hackers!

Como a alternativa é que continue a crescer a manipulação dos fatos, a censura e a perseguição aos que buscam informação, conhecimento e uma sociedade mais justa, imploro: salvem os hackers, ou salve-se quem puder!


Copyright 2013 Alexandre Oliva

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