Continuando a leitura crítica da proposta de substitutivo de crimes digitais do senador Azeredo, que deve ir a plenário no senado a qualquer momento...
Imagine que você está em casa, usando o computador (ou o celular): navegando na Internet, conversando com os amigos via chat, lendo e-mail, etc. Você recebe um e-mail, proveniente do endereço de um amigo seu, com a URL de uma página com um vídeo ou imagem bem engraçados. Abriu? Xeque mate! Vai pro xadrez!
Não, não estou falando de vírus, como no que escrevi ontem. O risco agora é diferente. Agora, você vai preso porque recebeu o que não podia.
Vamos supor que a pessoa que colocou aquele site no ar mora num país em que não exista direito autoral, ou em que os usos justos, que não caracterizam infração de direito autoral, sejam bem mais extensos que os permitidos pela legislação brasileira.
A pessoa que publicou o vídeo ou a imagem não pediu permissão pros titulares do filme em que ela se baseou para criá-lo, assim como eu não pedi permissão de ninguém pra publicar "Software Livre e a Matrix".
No meu caso, a lei de direito autoral daqui não exigia permissão. Mas vamos supor que o filme ou imagem distribuído por essa outra pessoa, em outro país, exigiria permissão adicional do titular para distribuição no Brasil.
Bom, no momento em que você acessou o site, antes mesmo de saber o que
havia nele, virou criminoso, segundo o projeto de lei prestes a ser
aprovado no Senado.
http://www.safernet.org.br/tmp/PLS-Azeredo-aprovado-CCJ-18jun2008.pdf
Art. 285-B. Obter ou transferir dado ou informação disponível em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, sem autorização ou em desconformidade à autorização do legítimo titular, quando exigida:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Há margem para dúvida, pois segundo a lei vigente hoje, ninguém precisa de permissão do titular de direito autoral para receber ou possuir uma cópia de uma obra, nem mesmo para apreciá-la em caráter privado.
Mas alguém tem dúvida de que esse detalhe vá ser "esquecido" pelos terroristas intelectuais que tentam acabar com o uso justo e o domínio público e prolongar indefinidamente os monopólios intelectuais?
Pois se até a Polícia Federal parece ter caído no conto de que a lei de direito autoral exige permissão para receber ou possuir cópias de obras criativas, ou mesmo para apreciá-las, isso vai dar um problemão...
quem baixa conteúdo pirata na internet também responde por esse tipo de crime [de violação de direito autoral] -- Fabrízio Galli, Delegacia de Crimes Fazendários
http://g1.globo.com/Noticias/Tecnologia/0,,MUL632164-6174,00.html
Então... Você obteve a cópia e, pelo projeto de lei, vai pro xadrez, porque a Polícia Federal acredita mais nos terroristas intelectuais, que acham que obras criativas são propriedade, do que nos legisladores que estabeleceram os princípios do direito autoral.
Agora imagine se o site que seu amigo supostamente recomendou contivesse imagens de pornografia infantil? Pelo projeto de lei:
Art. 241. Apresentar, produzir, vender, receptar, fornecer, divulgar, publicar ou armazenar consigo, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou Internet, fotografias, imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente:
Pena - reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Você viu a primeira cena, ficou horrorizado e fechou a página imediatamente, mas já era tarde. Você já havia recebido o conteúdo, portanto, pelo projeto de lei, já é criminoso pedófilo.
Pior: o conteúdo ficou no cache do seu navegador, no disco rígido do seu computador. Se a polícia vai levar o computador para perícia, vai encontrar os arquivos ali.
Pior: não adianta apagar. Arquivos apagados continuam no disco rígido, pois é assim que os computadores funcionam. Precisa de um especialista pra apagar "de verdade" os arquivos.
Pior: o e-mail que você recebeu não vinha do seu amigo, foi forjado por um inimigo que queria vê-lo na cadeia.
Pior: o seu inimigo denunciou-o como pedófilo para o seu provedor.
Pior: o seu provedor, pelo projeto de lei, é obrigado a encaminhar a denúncia para as autoridades, e a fornecer as provas que é obrigado a coletar a respeito da conexão de rede criminosa que você fez, aquela em que você baixou o vídeo ou a imagem que nem sabia o que era:
Art. 22. 0 responsável pelo provimento de acesso à rede de computadores é obrigado a:
I - manter em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de três anos, com o objetivo de provimento de investigação pública formalizada, os dados de endereçamento eletrônico da origem, hora, data e a referência GMT da conexão efetuada por meio de rede de computadores e por esta gerados, e fornecê-los exclusivamente a autoridade investigatória mediante prévia requisição judicial;
II - preservar imediatamente, após requisição judicial, no curso de investigação, os dados de que cuida o inciso I deste artigo e outras informações requisitadas por aquela investigação, respondendo civil e penal mente pela sua absoluta confidencialidade e inviolabilidade;
III - informar, de maneira sigilosa, à autoridade competente, denúncia da qual tenha tornado conhecimento e que contenha *indícios da prática de crime sujeito a acionamento penal público incondicionado, cuja perpetração haja ocorrido no âmbito da rede de computadores sob sua responsabilidade.
Resultado: de 3 a 9 anos de prisão, por visitar uma página supostamente recomendada por um amigo.
Mas, na verdade, não precisava nem visitar a página. O conteúdo ilícito poderia ter vindo no próprio e-mail indesejado, ou numa mensagem instantânea, ou deixada no seu caderninho de notas no Orkut, e você seria criminoso do mesmo jeito.
Direito autoral nunca funcionou assim, senão seria juridicamente perigoso até catar papel na rua. Vai que o papel contém uma mensagem publicada sem permissão do titular?! Abrir uma página na Internet, ou um e-mail, deveria ser diferente? Será que, no Brasil, o trecho mais maligno e absurdo (abaixo) de uma EULA que eu propus aqui vai passar a ter força de lei?
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Agora sabe o que mais? Você não precisaria nem ter visto o vídeo ou a imagem pra ser criminoso. Tipo assim, o ponto final da sentença anterior poderia muito bem ser uma imagem de pornografia infantil, com instruções para o seu navegador apresentá-la em tamanho tão reduzido que parecesse um ponto final. Mas a imagem estaria lá, teria sido baixada pelo seu navegador e deixada no disco rígido do seu computador, e a perícia a encontraria, apesar de você nunca tê-la visto.
Que pérola legislativa! Vamos começar a mandar pro Senador Azeredo páginas com conteúdo pedofílico, visível ou não, pra ele entender o tamanho do problema que está criando?
Será que o pessoal da Safernet, que investiga e denuncia crimes de pedofilia, pode ajudar?
Até blogo...