Continuando a análise crítica do projeto de lei de crimes cibernéticos, sinto que devo esclarecer algumas conclusões erradas a que cheguei, por desconhecimento de lei penal, e aproveitar pra elogiar alguns avanços nas emendas do projeto, feitas de última hora, que corrigiram, pelo menos em parte, alguns dos problemas que eu tinha levantado. Infelizmente, problemas muito sérios permanecem, e um problema terrível foi introduzido em emenda de última hora.
Vou basear minha avaliação na versão do projeto aprovada pelo senado,
seu "esclarecimento oficial" (não era pra precisar, era?), e na
análise do projeto de lei por parte de alguns juristas, coisa que eu
não sou. Adiciono ainda algumas notícias, pra contextualizar melhor:
http://www.senado.gov.br/comunica/agencia/pags/01.html
http://www.senado.gov.br/agencia/verNoticia.aspx?codNoticia=76844
http://idgnow.uol.com.br/internet/2008/07/10/mudancas-de-ultima-hora-nao-resolvem-vagueza-do-pls-76-00-acusa-fgv/
http://tecnologia.uol.com.br/ultnot/2008/07/10/ult4213u494.jhtm
http://a2kbrasil.org.br/Esclareca-suas-Duvidas-sobre-os
http://sociedadelivre.blogspot.com/2008/07/manifesto-o-pl-de-crime-eletrnico-e.html
http://idgnow.uol.com.br/internet/2008/07/11/crimes-digitais-como-a-nova-lei-pode-afetar-seu-cotidiano-virtual/
http://www.tid.org.br/modules/news/article.php?storyid=476
Do celular direto pra cela
Parece que a propagação de vírus de maneira não intencional do seu celular ou do seu computador infectados, da forma espalhafatosa como descrevi, dificilmente seria qualificada como crime, pois não tem dolo, e código penal só se aplica quando tem.
Suponho que alguém que ativamente negligencie medidas de defesa de seu computador vulnerável, com isso ativamente contribuindo para a propagação do vírus, pode ser enquadrado, ainda que em grau menor.
Lamentavelmente, quem faz pesquisa com vírus e os instala intencionalmente em redes controladas vai ter de parar de fazer isso pra não ser enquadrado, pois a lei tipifica crime de conduta, independente de intenção.
Zumbis pedófilos
Da mesma forma, se a penetração do vírus der margem para que redes de zumbis armazenem pornografia infantil em seu computador, você não vai ser enquadrado só porque tem coisa no seu computador; só é doloso se foi você que colocou lá. Mas até você mostrar que nariz de porco não é tomada, pode ter muita prisão e soltura dantesca, por assim dizer.
Infelizmente, quem faz investigação e denúncia de crimes de pedofilia, como a Safernet, fica impedido pelo projeto de lei de continuar fazendo esse serviço para a sociedade, pois novamente o projeto tipifica crime de conduta.
Sorria, você está sendo logRado
Lamentavelmente, a emenda para a exigência ao provedor de repassar denúncias recebidas não passa nem perto de corrigir o problema. Não faz sentido alguém denunciar pro provedor, em vez de diretamente para a autoridade policial.
Felizmente, não há exigência de que o provedor defina canal para receber denúncias. Além disso, a informação que o projeto de lei exige que o provedor mantenha, embora sujeita a interpretações várias, e evidentemente redigida por quem não tem idéia de sobre o que está legislando, parecendo-me insuficiente para o terrível fim pretendido.
Fica ainda o risco de ter a informação logada mesmo antes de ser suspeito ou investigado por qualquer coisa, de todo mundo ser presumido suspeito até prova de culpa (é o fim da inocência), e a falta de limitação à quantidade de informação que a justiça pode exigir do provedor durante investigação.
Provedores que respeitem a privacidade de seus clientes não vão guardar informação além da estrita exigência do projeto de lei, nem vão estabelecer um canal para recepção de denúncias.
Navegando pro xadrez
A redação do artigo 285-B melhorou, eliminando a possibilidade de criminalização mediante licenciamento abusivo de obras criativas. Porém, resta ainda muito forte a possibilidade de criminalização mediante limitações de acesso impostas através do dispositivo.
Com isso, baixar informação de um site sem política restritiva dificilmente é crime, mas como caiu o "quando exigida" da redação, agora o titular da rede, do sistema informatizado ou do dispositivo de comunicação (que, pela definição no projeto de lei, podem ser qualquer coisa que carregue ou processe informação ou dados: celular, computador, ábaco, livro, disco, etc) pode estabelecer as restrições que bem entender, e quem deixar de cumprir (com dolo) vai de fato pro xadrez. É a materialização de um pesadelo que tive há um ano: EULAs arbitrárias para livros, discos, sites, etc. O fim do uso justo.
Ficou pior sem o "quando exigida", pois na redação anterior você poderia ao menos dizer que não precisa de permissão para ler, copiar trechos, etc. Com a nova redação, qualquer restrição, por mais absurda e cabeluda que seja, tá valendo, e, pra quem não cumprir, xeque mate! Acho que eu não devia ter mencionado esse detalhe enquanto ainda havia tempo para emendas...
Pedófilo na arapuca
O caso de seu inimigo torná-lo um pedófilo induzindo-o acessar ou receptar, sem seu conhecimento prévio, imagens desse tipo, é outro caso em que a ausência de dolo descaracteriza o caráter penal, mas a evidência presente no computador do usuário e talvez em logs do provedor de acesso e do site acessado pode ser suficiente para inverter o ônus da prova, e exigir que o cidadão tenha de trabalhar duro para provar sua inocência.
Ponderando crimes digitais
A discussão sobre logs ainda se aplica. Já a infração a direito autoral induzida por concessão de licença sem autoridade para tanto é outro caso em que não há dolo, portanto não há crime, embora eu entenda que o ilícito cível ainda se aplique.
Liberdade de expressão
O cenário alarmista do prof Pedro Rezende se tornou real com a emenda ao 285-B. A nova redação do 285-B dá margem a criminalização por divulgação de dados ou informação que estão ou estiveram armazenados em dispositivos de comunicação (de novo, qualquer coisa), mesmo que as informações tenham sido obtidas licitamente e/ou de outras fontes.
Para criminalizar a publicação de determinada informação por alguém, basta armazená-la em computador protegido por expressa restrição de acesso, nele documentando a restrição à autorização para publicação, e notificar o potencial divulgador dessa situação. Se houver ou permanecer a publicação mesmo assim, há dolo e portanto crime de fornecimento não autorizado de dado ou informação, agravado pelo parágrafo único do artigo 285-B.
E tome censura de imprensa (alguém se atreveria a publicar um dossiê vazado da Casa Civil se este projeto de lei já estivesse em vigência?), restrição de publicação sem usar de direito autoral, restrição à divulgação de patentes, fim da liberdade de expressão. Imagine o cara receber de um advogado uma carta dizendo:
Prezado Srs Steve Balmer, Jim Whitehurst e Mark Shuttleworth CEOs da Microsoft, Red Hat e Canonical
Vimos por meio desta exigir a imediata retirada do mercado e de seus sites de todas as cópias do Microsoft Windows, Red Hat Enterprise [GNU/]Linux e Ubuntu, respectivamente.
Trata-se de dados que armazenamos em nosso servidor principal, protegido por firewall e chaves de acesso de 16384 bits, que, por cumprimento a acordos de licenciamento com vossas senhorias, não autorizamos a ninguém copiar ou divulgar.
A oferta desses produtos no mercado, ou para download gratuito, constitui violação à restrição imposta em nosso site no que diz respeito à transmissão desses dados.
Queiram por gentileza atender à nossa solicitação imediatamente, ou nos veremos obrigados a denunciá-los ao Ministério Público por violação do artigo 285-B do código penal.
Brother, Brother e Irmãos Advocacia, representando o Ministério da Cultura
Já pensou?
Vai dizer que o projeto de lei não diz isso? Eu sei que não queria dizer isso, mas é o que diz. Por isso mesmo o debate público é tão importante.
Novos Crimes Absurdos
Parada do provedor de Internet
Evidentemente a interrupção não intencional do funcionamento do Speedy da Telefónica não tem dolo (salvo improvável comprovação de negligência grave), mas uma parada para manutenção programada, sim.
Acesso a DVD importado
Pela letra da lei, DVD é dispositivo de comunicação, então valeria criminalmente qualquer restrição da licença dele, independente de DRM, inclusive de acesso à informação, que não é (nem pode ser) restrito pela lei de direito autoral.
Desbloqueio de celular, TiVO, console de jogos
É isso aí, 285-A e 163 proibem mesmo, se os fornecedores conseguirem se caracterizar como legítimos titulares, por exemplo, licenciando os dispositivos de comunicação em regime de comodado.
Manchetes cybercriminosas
Pedófilo liberado por falta de provas
A manobra judicial que sugeri de brincadeira para os dois advogados de nome Thiago e sobrenome Oliveira, ambos ligados à Safernet, infelizmente parece que não funciona. A promotoria, ou pelo menos a polícia, no cumprimento de ordem judicial, tem permissão para violar a lei e os direitos do cidadão.
De toda forma, vale o ponto de que os grandes criminosos, assim como não criminososos que valorizam sua privacidade, criptografam o conteúdo de seus discos e sua comunicação na rede, tornando as medidas do projeto de lei injustas, por darem margem à punição seletiva de pequenos infratores, sem atingir os grandes, e por dar margem à suspeição sobre não infratores por meramente usarem mecanismos também utilizados por grandes criminosos.
A crítica à falta de exceção no projeto de lei para quem faz investigação privada desse tipo de crime se sustenta.
Atriz pornô grávida
Claro que forcei um pouco pondo a atriz (que existe, sim, fui procurar na Internet pra emprestar mais verossimilhança à matéria) que o feto é criança, mas é isso que introduz dolo (embora eu ainda não tivesse ciência dessa necessidade naquela altura) e portanto poderia tornar o ato um crime.
Perdão à eterna Marilyn e a quem tenha se ofendido com o Pinto Grande.
Pedófilos quase adultos enamorados
Isso infelizmente é um cenário perfeitamente factível já hoje. É triste que, no afã de proteger crianças inocentes e por um excesso de moralismo, a lei cerceie o registro da prática sexual de quase adultos por eles mesmos. E muita gente cai nesse discurso de defender as crianças (que devem sem ser preservadas) sem lembrar que os quase adultos (a quem essa preservação pode até ser prejudicial) são tratados pela lei exatamente da mesma maneira, e tudo é discutido como se fosse uma coisa só.
Se um homem ou uma mulher de 17 anos já tem corpo e maturidade pra manter relações sexuais, criar os próprios filhos, e escolher o que vão prestar no vestibular e até para eleger seus representantes, por que são incompetente para decidir mostrar seu corpo de maneira artística, e serão julgados criminosos se o fizerem?
O policial encarregado de reconhecer a menina auto-vítima de pedofilia não precisa fugir, a não ser que use a foto da garota para fins outros que não o cumprimento de seu dever policial.
Já no caso do gerente do provedor, é improvável que seja enquadrável se não houver dolo, mas a partir do momento que ele toma ciência da foto, não a removendo sem ordem judicial para preservá-la, pode sim ser enquadrado.
Softwares Impostos
A alteração na redação do 285-B, ainda que inviabilize este caso específico, ainda permite enquadrar qualquer um que distribua qualquer dado ou informação, conforme discutido acima.
Pra quem boiou, remeto ao anúncio do IRPF-Livre 2008, que explica a
campanha da FSFLA contra os Softwares Impostos iniciada em 2006.
http://www.fsfla.org/svnwiki/anuncio/2008-04-softimp-irpf-livre-2008
Liberdade de imprensa
O cenário proposto, que faz muitas referências implícitas a episódios históricos (golpe militar de 64, AI-5 de 68, morte de Tiradentes em 1792, revolução francesa em 1789, campanha pelas diretas de 84) e ficcionais (1984 de George Orwell), é parcialmente enfraquecido pela nova redação do 285-B.
Parece-me claro que, se o Passarinho que contou a Julia e Winston os houver informado da restrição que violou para lhes transmitir os dados, há dolo, e a minha leitura do 285-B é que não é só o primeiro distribuidor que incorre no crime.
De fato, pelo que proponho lá pra cima, não precisaria nem o Passarinho ter contado; se o próprio FEBraban houvesse informado Julia de suas ameaças ao Senado, mencionando que se encontravam em computador protegido por senha e sem permissão de divulgação, ela já seria criminosa por publicá-las.
Não me dei o trabalho de dizer que era ficnotícia, mas com tantas datas futuras, acho que não precisava, né? Ao contrário da denúncia que fiz sobre como abusaram dos Del'Isola, coitados...
Demagocracia e os Del'Isola
Tá ruço. O projeto continua cheio de problemas, e o confirmação (vazamento?) no anúncio de aprovação do projeto, pela Agência Senado, de que se trata de uma ferramenta de autoriterrorismo (endurecimento da cobertura legal e dos mecanismos de policiamento de obras criativas), não me deixa nada tranqüilo.
Veja também uma troca de correspondência que mantive, em público, com
o sr José Henrique Santos Portugal, assessor do senador Azeredo,
relator do projeto de lei no senado.
http://listas.softwarelivre.org/pipermail/psl-brasil/2008-July/024024.html
http://listas.softwarelivre.org/pipermail/psl-brasil/2008-July/024026.html
http://listas.softwarelivre.org/pipermail/psl-brasil/2008-July/024029.html
http://listas.softwarelivre.org/pipermail/psl-brasil/2008-July/024070.html
Até blogo...