A Distopia do Remoto Controle
Alexandre Oliva
Publicado na oitava edição, de novembro de 2009, da Revista Espírito Livre.
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado...
Pela janela do quarto Pela janela do carro Pela tela, pela janela Quem é ela? Quem é ela? Eu vejo tudo enquadrado Remoto controle... -- Adriana Calcanhotto, em Esquadros
Muito já se falou e escreveu sobre o risco de ceder controle sobre seu computador a alguém potencialmente mal intencionado. A confiança cega que alguns depositam em fornecedores de software privativo dificulta a aceitação da plausibilidade do risco, mas fatos recentes corroboram o perigo, mostrando que nem só de más intenções se o constrói.
Veja o caso da Amazon.com. Vendeu milhares de cópias da distopia orwelliana 1984, restritas ao seu leitor portátil de livros eletrônicos, antes de descobrir que tal distribuição não fora autorizada. Presumivelmente por receio das perdas que sofreria numa disputa e provável derrota judicial, achou por bem interromper as vendas da obra e cancelar as vendas já concluídas: comandou os equipamentos que carregavam cópias da obra a que as removessem imediatamente. Para usar o termo escolhido pelo próprio fabricante para batizar o produto, ateou fogo nos livros. É capaz disso porque mantém controle remoto sobre esses equipamentos que supostamente já não mais lhes pertencem. Curioso é que, etimologicamente, a palavra “remòto” provém justamente do particípio passado do verbo “removère”, remover. A obra foi “remòta” remotamente, clientes reclamaram, Amazon.com prometeu não fazer mais, mas o prospecto de que fatos semelhantes se repitam é cada vez menos, digamos, remoto.
Há semelhanças com o caso da nVidia, levada ao tribunal e condenada pela implementação de uma otimização nos chipsets que desenvolveu para diversas placas mãe. Não conseguiu obter permissão para uso da tecnologia, então acabou tendo de fazer todo o possível para desabilitar a otimização, até nas placas que já estavam nas mãos de clientes. Precisou convencer todos os fabricantes de placas mãe com os chipsets otimizados a preparar e publicar “atualizações” da BIOS que impediriam o uso da otimização. Ante o risco jurídico, foi fácil convencê-los a também remover as versões antigas que o permitiriam. Diversos usuários mantiveram o bom desempenho de seus equipamentos evitando a atualização. Felizmente para eles, a nVidia não tinha mecanismos à sua disposição para providenciar a remoção remota da funcionalidade. Mas há quem tenha...
Fornecedores de programas que funcionam através da Internet, por exemplo, podem determinar, a cada acesso ao serviço, qual versão do programa executar ou oferecer ou não para o usuário. Computadores possuídos pelo Microsoft Windows também consultam seu mestre todos os dias, e podem ser comandados a instalar atualizações sem sequer avisar ao usuário. O mesmo pode acontecer com computadores possuídos por qualquer outro software privativo, seja sistema operacional, seja aplicativo. Não podendo estudar o código fonte, adaptá-lo às próprias necessidades e preferências ou contar com a ajuda de terceiros à sua escolha para fazê-lo, usuários podem classificar software privativo em dois grupos: os que sabidamente estão sob controle remoto de seus mestres e os que talvez estejam. Todo software privativo carrega o risco de que o fornecedor decida ou seja obrigado a dar uma, digamos, amazoneada orwelliana no programa. O usuário acorda no outro dia e descobre que sua amada funcionalidade não está mais ao seu lado.
Pode ocorrer de o usuário se ver impedido de acessar seus próprios dados, sem aviso prévio. A empresa canadense i4i, por exemplo, processou a Microsoft por uso de algumas técnicas de representação de dados em formato XML, entendendo que o Microsoft Word praticava essas técnicas. Microsoft foi multada e proibida de comercializar o Word nos EUA. Cabe recurso, mas o juiz até que foi complacente. Poderia ordenar que a Microsoft fizesse tudo que estivesse ao seu alcance para que usuários em qualquer lugar do mundo não mais pudessem se valer dessas técnicas desenvolvidas e distribuídas a partir dos EUA pela Microsoft. Ela teria de utilizar sua porta dos fundos em cada computador possuído pelo Windows para forçar a atualização do Word para uma versão sem essas funcionalidades. Verdade seja dita, não seria um grande desastre: com algum esforço da Microsoft, continuaria possível abrir arquivos OpenXML, ainda que com alguma perda. Mas outras patentes poderiam ser tão amplas a ponto de exigir a remoção de todo o suporte a um determinado formato de arquivos, deixando usuários cujos computadores são controlados remotamente imediatamente incapazes de acessar os dados que assim armazenaram. O pior é que não parece que juízes ou titulares de patentes estejam inclinados a se preocupar com os usuários e, dados os termos típicos de licenciamento de software privativo, haveria pouquíssimas possibilidades para demandar do fornecedor sequer reparação pela perda de funcionalidade.
Há outro caso aterrorizante, que materializa os piores pesadelos de Tim Berners-Lee. A empresa americana Eolas obteve patente sobre plugins para navegadores, processou a Microsoft em 1999, teve a patente anulada em 2004, reverteu a anulação em 2005 e acabaram chegando a um acordo judicial em 2007, permitindo à Microsoft reativar facilidades que desativara para contornar a patente. Eolas teve recentemente outra patente concedida nos EUA, agora sobre tecnologias AJAX, aquelas que tornam páginas web interativas sem precisar de plugins. Armada dessas patentes, processou Google, Yahoo, Apple, Sun, Amazon.com, Citigroup, JPMorgan, eBay, Go Daddy, Playboy, YouTube e outras 14 empresas. Quantas delas cederão às ameaças e pagarão pela proteção para usar essas tecnologias para servir seus clientes? Quantas resistirão, tentando invalidar ou contornar as patentes, correndo o risco de serem obrigadas, por ordem judicial, a puxar o tapete dos clientes? Quantos clientes desprevenidos cairão? Quantos receberão como última atualização silenciosa a remoção da funcionalidade, baseada em plugins do navegador, que permitiria receber outras atualizações? Quantos conseguirão ler na Internet as notícias a respeito, antes de terem os navegadores infratores silenciosamente “remòtos” de seus computadores?
Patentes de software são uma péssima ideia, como já previa o visionário Bill Gates em 1991. Enquanto a Corte Suprema dos EUA tenta por um fim à distorção de decisões anteriores que deu margem a essa aberração, o órgão responsável por receber pedidos de patentes no Brasil se empenha em desprezar nossa lei e importar a interpretação distorcida, impondo um enorme risco desnecessário e daninho a todos os desenvolvedores, distribuidores e usuários de software do país.
Mesmo revertidos esses desmandos, o risco aqui exposto permaneceria enquanto fornecedores mantiverem o poder de controlar remotamente os computadores de seus usuários. Mesmo sendo bem intencionados, havendo qualquer munição jurídica capaz de levar um juiz a ordenar que façam tudo que estiver ao seu alcance para evitar que usuários se valham de certas funcionalidades de programas que deles receberam, podem ser obrigados a usar o controle remoto de maneira daninha aos usuários e a si mesmos. Ainda que não reconheçamos patentes de software ou outros poderes de exclusão injustos, um juiz remoto pode dar a ordem na origem do software e afetar usuários no mundo inteiro.
Fornecedores de software e hardware, pelo seu próprio bem, deveriam deixar de manter controle remoto sobre os computadores de seus clientes. Nós, usuários, não deveríamos jamais ceder o controle sobre nossos computadores e dados, exorcizando o software privativo que os possui: utilizando somente Software Livre, do qual nosso controle não é “remòto”, escapamos do enquadramento. “Quem é ela? Quem é ela?”, que vislumbramos cortada e destroçada nas telas e janelas de quartos e carros do e-mundo distópico do remoto controle? Seu nome é Liberdade! Ame-a e cuide para não acordar um dia e descobrir que ela foi, tipo assim, “remòta”!
Referências
http://letras.mus.br/adriana-calcanhotto/43856/ http://www.theregister.co.uk/2009/07/18/amazon_removes_1984_from_kindle/ http://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=106989048 http://www.defectivebydesign.org/blog/1248 http://www.fsf.org/news/amazon-apologizes http://www.etimo.it/?term=remoto http://www.nforcershq.com/forum/bios-update-warning-t72851.html http://www.dvhardware.net/article30967.html http://www.ngohq.com/news/14892-nvidia-forced-to-disable-chipset-pci-prefetch.html http://fsfla.org/blogs/lxo/pub/isca-anzol-rede http://www.findmysoft.com/news/Microsoft-Pushes-Windows-Updates-without-User-Permission/ http://www.fsf.org/blogs/rms/mac-osx-mistakes-and-malfeatures http://news.bbc.co.uk/2/hi/8197990.stm http://www.groklaw.net/article.php?story=20090817235436439 http://homembit.com/2009/10/openxml-who-fooled-who.html http://arstechnica.com/tech-policy/news/2009/10/company-that-won-585m-from-microsoft-sues-apple-google.ars http://en.wikipedia.org/wiki/Eolas http://www.groklaw.net/article.php?story=20091002212330353 *http://www.groklaw.net/staticpages/index.php?page=2009022607324398
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http://www.fsfla.org/svnwiki/blogs/lxo/pub/distopia-do-remoto-controle