FLISOL na cabeça!
Alexandre Oliva
Publicado na décima-primeira edição, de fevereiro de 2010, da Revista Espírito Livre.
Está se aproximando o maior evento distribuído de Software Livre do mundo: o Festival Latino-americano de Instalação de Software Livre. Todos os anos, em centenas de cidades, reúnem-se militantes do Software Livre e, digamos, pessoas normais que querem aprender sobre Software Livre e tê-lo instalado em seus computadores. Em edições anteriores, algumas das sedes já reuniram mais de 5 mil pessoas cada uma. Este ano, o festival está marcado para 24 de abril. Ainda dá tempo de organizar uma sede em sua cidade!
Para falar um pouco sobre esse grande evento, convidamos o militante de Software Livre, membro do conselho da Fundação Software Livre América Latina, Alexandre Oliva, que tem participado do FLISOL nos últimos 3 anos.
- O que pretende o FLISOL?
Vejo um consenso nas comunidades que o promovem de que há dois grandes objetivos: a divulgação do Software Livre e sua filosofia, e a integração das comunidades de Software Livre da América Latina.
A integração se promove através da coordenação necessária para a organização de um evento desse porte, e pela regra de que não deve haver mais de uma sede do evento por cidade, de maneira que as comunidades locais somem esforços ao invés de se dividirem.
A divulgação se faz não só através da instalação de Software Livre a quem leve seus computadores, como diz o nome do evento, mas também através de palestras técnicas e filosóficas, tanto para ensinar os novos usuários a utilizar o software recém-instalado, como para “instalar” na cabeça das pessoas a filosofia do compartilhamento, da autonomia, do respeito ao próximo, da busca do bem comum e do enfrentamento às ameaças às liberdades de todos.
- Que software vocês instalam?
Depende da sede. Uma das regras mais marcantes do FLISOL é que não há regras. Cada sede se organiza de forma praticamente independente, embora existam coordenações nacionais e internacionais.
Então, você vai encontrar sedes que instalam de fato Software Livre: sistemas operacionais inteiramente Livres, como OpenBSD, UTUTO XS, Venenux, Trisquel, gNewSense, BLAG, Dragora, Kongoni, Musix, Dyne:bolic, Vegnux NeonatoX, RMS's Mostly Slax, Parabola, além de aplicativos Livres para sistemas operacionais diversos, como os expoentes OpenOffice.org (no Brasil, BROffice.org) e Mozilla Firefox.
Mas também vai encontrar sedes que instalam, distribuem e promovem software grátis, ainda que não seja Livre, promovendo a confusão que existe ao redor desses termos.
Software Livre respeita as liberdades essenciais dos usuários de executar, estudar, adaptar, melhorar e distribuir o software, inclusive comercialmente. Pode estar no domínio público ou ter seus direitos autorais licenciados de maneiras que permitam aos usuários gozar dessas liberdades, exigindo ou não que essas permissões sejam passadas adiante junto com o software.
Já software grátis, embora possa ser distribuído e executado sem ônus, normalmente não permite ao usuário, com ou sem ajuda de terceiros à sua escolha, estudar seu funcionamento ou adaptá-lo para que funcione como deseja. Serve como plataforma para o desenvolvedor impor suas escolhas sobre os usuários: justamente a antítese da autonomia defendida pelo movimento Software Livre.
Ocorre que muitas das distribuições mais populares de GNU/Linux, *BSD e OpenSolaris incluem muito Software Livre, mas também bastante software grátis privativo, que priva usuários das liberdades fundamentais. Muitos usuários, e por vezes as próprias distribuições, não fazem distinção. São distribuições grátis, mas não Livres, e propagam essa confusão. Mesmo as que fazem a distinção acabam transmitindo uma ideia de que o software privativo seja algo benéfico, ao invés de uma armadilha para capturar, subjugar e controlar usuários.
- Você se opõe à instalação dessas distribuições no FLISOL?
Não exatamente. Não tenho nada contra as distribuições, tenho algo contra o software privativo que elas distribuem.
Instalar um Debian GNU/Linux, para em seguida substituir o Linux que ela distribui pelo Linux-libre correspondente, do projeto Freed-ebian, resulta um sistema Livre. Instalar o Fedora, para em seguida instalar o Linux-libre correspondente do projeto Freed-ora, e aí remover os pacotes *-firmware não-Livres, dá no mesmo. Dá pra fazer algo parecido com Gentoo, que inclusive oferece em seus repositórios de pacotes um Linux-libre. Noutras distros que não separem as coisas tão claramente, pode ficar mais difícil.
Muito mais simples e seguro é já instalar uma distro Livre, em que o usuário nem vai correr o risco de ser induzido pelo sistema a instalar software privativo e cair na armadilha depois do evento. E ainda se reforçam as comunidades de Software Livre da América Latina, berço de mais de metade das distros Livres.
- Então por que tem gente que instala as não-Livres?
Só posso especular, mas minha impressão é de que prevalece um senso competitivo de comunidade, uma coisa de carregar a bandeira da sua distribuição favorita aonde for, de minimizar e relevar as falhas e discrepâncias do próprio “time”, maximizando e reverberando os boatos a respeito de dificuldades e erros dos times dos outros.
Acredito que a maior parte dos que defendem ferrenhamente algumas distros quase-Livres nunca sequer experimentaram as variantes Livres que existem delas, e guiam-se por boatos e suposições incorretas sobre suas limitações.
Por exemplo, há quem acredite que não dá para assistir a vídeos nos formatos mais comuns utilizando Software Livre. É uma confusão conceitual. Há Software Livre para executar praticamente qualquer formato, mesmo aqueles cobertos por patentes de software, porque as patentes são válidas em alguns poucos países. Há distribuições não-Livres que evitam esses Softwares Livres, não para serem menos privativas, mas para evitar riscos de processos pelos titulares das patentes nesses países. Já as distribuições Livres em geral incluem esses programas, pois não cedem as liberdades sem uma boa briga.
- Mas e as incompatibilidades de hardware?
Também há muito exagero nesse sentido. Ao contrário dos formatos de vídeo, aqui há um fundo de verdade: há, de fato, dispositivos cujos projetistas fazem questão de controlar a vida de seus clientes, desrespeitando seus direitos humanos e liberdades essenciais.
Para explicar isso a novos ou futuros usuários de Software Livre, começo com exemplos como o iPad, quase todos os telefones celulares, consoles de jogos, videocassetes digitais e por aí vai. São computadores disfarçados, configurados para controlar, espionar, restringir e tornar usuários impotentes e dependentes do fornecedor. Carregam valores diametralmente opostos aos que o Movimento Software Livre propõe. Você deve poder controlar sua própria vida e a tecnologia que usa. Ninguém deveria tirar essa liberdade de você.
Ainda que os computadores convencionais não sejam tão desrespeitosos assim, muitos de seus componentes, também computadores disfarçados, são. Placas controladoras de rede com e sem fio, de vídeo, áudio e disco, entre outras, têm seus próprios processadores e memória. São computadores, por vezes igualmente configurados para controlar, espionar, restringir e tornar usuários impotentes e dependentes de seus fornecedores. Pior: às vezes você nem sabe que seu computador tem componentes assim, que conseguem espionar tudo que acontece no seu computador e estão conectados diretamente à rede. Muita gente prefere nem pensar nisso, para deleite dos que querem que seja assim.
Os computadores que possuem componentes assim exigem que a gente abra mão de nossas liberdades para que funcionem. Esses computadores, deveríamos rejeitar, por solidariedade a todos que poderiam se tornar vítimas deles. É nosso dever de cidadão solidário combater esse abuso de poder e exigir o respeito à liberdade de todos. Todos podemos fazer essa exigência, levando esse fator em conta na hora de escolher quais equipamentos eletrônicos comprar.
Mas de repente você já tem um computador assim faz tempo. Não pode levá-lo ao vendedor para exigir de volta o pagamento pelo computador que, na verdade, nunca foi realmente seu.
Muitas vezes é possível substituir os componentes desse computador por outros que não sejam inimigos de nossa liberdade. Outras vezes, não, por raras questões técnicas ou porque seus projetistas as configuraram para que não funcionem mais se você substituir os componentes por outros que queira usar para se tornar Livre. Há registros de comportamento anti-ético assim de fornecedores de computadores com placas de rede sem fio, discos rídigos e outros componentes.
Ainda assim, quase sempre é possível conseguir um componente equivalente que funcione com USB ou outras portas de expansão de computadores: assim dá pra conectar um dispositivo de rede com ou sem fio, um disco rígido, ou até uma controladora de vídeo, mesmo em computadores configurados para servir não a você, mas ao seu projetista.
Talvez não seja tão conveniente quanto usar o dispositivo que foi embutido na máquina para controlar você. Talvez lhe pareça mais conveniente aceitar o abuso, ao invés de dizer aos projetistas e vendedores quem você faz questão que controle seu computador.
Se você aceita o abuso, vão continuar abusando de você e de todos. Se rejeita, se não compra o que tentam impor, e se mais gente age assim, vão perceber que lhes custa e passar a respeitar a todos, não porque façam questão de nos respeitar, mas porque querem vender.
Por isso, não configuro componentes privativos do computador quando instalo Software Livre para um amigo. Sugiro e ajudo a que providencie um componente compatível com seu computador e com sua liberdade, ainda que lhe custe e não lhe resulte tão conveniente.
Se instalasse o software privativo que o componente exige, meu amigo ficaria confortável com o resultado e provavelmente se esqueceria do problema. Quando chegasse a hora de comprar outro computador, compraria outro que não o respeita, dando mais poder aos projetistas que tentam nos controlar a todos. Instalá-lo seria um favor não ao amigo, mas ao fornecedor, que ganharia ou manteria um escravo.
Não o instalando, meu amigo se lembra do problema todas as vezes que o uso do substituto lhe pareça menos conveniente. Quando chega a hora de comprar o próximo computador, vai tomar cuidado para que não lhe imponha essa inconveniência. Fará um favor a si mesmo e a todos.
Se alguém prefere evitar a inconveniência agora, ao invés de instalar toda uma distribuição Livre no computador, instalo alguns programas Livres no sistema que já está lá. O usuário continua com as inconveniências com as quais já se acostumou, mas sei que vai gostar dos programas, e que numa próxima oportunidade, quem sabe num futuro FLISOL, virá com outro computador, comprado com cuidado para que Software Livre funcione 100% nele. Claro que me disponho a ajudar na escolha.
Pra quem preferir, instalo ambos: os aplicativos no sistema já em uso, e as distros Livres, de modo que o usuário possa escolher qual iniciar a cada vez que ligar o computador. E quanto alguma incompatibilidade dificultar o uso de algum componente, o usuário lembrará que o projetista do componente lhe quer como escravo e nos impede de ajudá-lo a ser Livre enquanto use aquele computador.
- O que você sugere para quem quer colaborar com o FLISOL?
Visite http://flisol.net, veja se já há alguma sede em cidade próxima, entre em contato e ofereça seus esforços. Se não houver, procure outras pessoas do Software Livre nas redondezas e registrem uma sede!
Aproveitem para baixar distros Livres para oferecer (ou vender cópias) para os participantes. Não esqueça de baixar e oferecer também os fontes, algumas licenças de Software Livre exigem pelo menos a oferta deles.
Para os que carregam a bandeira de alguma distro não inteiramente Livre, procure descobrir o que há de não-Livre na sua distro favorita, para evitar instalar esses componentes no FLISOL. Isso fica fácil instalando uma distro Livre baseada nela: compare as funcionalidades e os pacotes instalados e disponíveis. Experimente usar a versão Livre por um tempo, para saber orientar melhor os participantes em relação às diferenças, e até para quebrar mitos que existam a respeito. Até 24 de abril tem tempo! Se gostar, vá ficando. Aproveite pra dar uma força pra comunidade da distro Livre!
Sua familiaridade vai permitir transmitir uma mensagem mais coerente com a do FLISOL, na hora de instalar e distribuir software, sem deixar de promover sua distribuição favorita. Se você gosta do Debian, instale e diga que está instalando o gNewSense 3, uma versão Livre do Debian. Se lhe agrada o Fedora, vá de BLAG. Se é fã do Ubuntu, escolha Trisquel, Venenux ou gNewSense 2.3. Para os fãs de Slackware, Kongoni e RMS's Mostly Slax. Do Arch, Parábola. Do Gentoo, UTUTO XS é um descendente distante.
Dentro da proposta do FLISOL, também cabe instalar a distro quase-Livre e remover ou substituir os componentes não-Livres por outros Livres, enquanto explica ao participante como evitar cair nas armadilhas. A mensagem fica um pouco menos coerente, mas por outro lado vai ter mais tempo pra explicar.
Prepare também sua palestra, para ajudar os iniciantes a começar a usar os sistemas Livres, entrar em contato com as comunidades, e aprender a filosofia que nos move. Lembre que a instalação do software a gente faz no computador, mas a liberdade é o usuário que precisa instalar na própria cabeça, na própria vida.
- E pros participantes?
Visitem http://flisol.net, localizem a sede mais próxima, e apareçam lá dia 24 de abril! Isso, se não quiserem ajudar a organizar. Não precisa saber de Software Livre pra ajudar a organizar um evento.
Levem seus computadores e faça questão que instalem somente Software Livre neles, de preferência mais de uma distribuição, pra poder conhecer e escolher melhor. Havendo dificuldades, peçam dicas para comprar seus próximos computadores.
Mais importante, liberem suas mentes para conhecer a filosofia de liberdade, solidariedade e respeito ao próximo do Movimento Software Livre. Assistam às palestras, façam perguntas e mantenham contato.
Sejam bem-vindos à imensa comunidade de Software Livre da América Latina!
Copyright 2010 Alexandre Oliva
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