Entrevista com Richard Stallman e Brian Gough, do Projeto GNU
Alexandre Oliva e João Fernando Costa Júnior
Publicado na [[http://www.revista.espiritolivre.org/?p=477|décima-terceira edição, de abril de 2010]], no primeiro aniversário da ?http://www.revista.espiritolivre.org/.
Nesta edição de aniversário da Revista Espírito Livre, o bate-papo é com Richard Stallman e Brian Gough, ambos do Projeto GNU. A conversa foi conduzida por Alexandre Oliva, colunista da Revista Espírito Livre e membro da Fundação Software Livre América Latina.
Revista Espírito Livre: Por que o mundo precisava de um sistema operacional, digamos, gnu [em inglês, soa como novo] nos anos 80?
Richard M. Stallman: O mundo precisava de um sistema operacional em software livre porque não existia nenhum. Portanto, eu decidi escrever um. Tomei, então, decisões técnicas: decidi seguir o desenho do Unix para torná-lo portável, fazê-lo compatível com o Unix para que os usuários de Unix pudessem migrar para ele facilmente, e dar suporte a máquinas de 32 bits ou superiores, para evitar o trabalho extra de suportar pequenos espaços de endereçamento.
REL: Que papéis vocês desempenharam, ou desempenham, no projeto GNU e por quanto tempo?
RMS: Eu lancei o projeto GNU em 1983 e tenho sido seu líder (Chief GNUisance) desde então. Entretanto, recentemente eu envolvi o Comitê de Aconselhamento do GNU em algumas decisões e espero que ele vá tomando conta das tarefas de liderança do GNU no futuro.
Brian J. Gough: Minha função principal na codificação é como mantenedor da biblioteca numérica do GNU, a GSL, à qual comecei a contribuir como desenvolvedor em 1996.
Mais recentemente, fui organizador de vários "Encontros de Hackers GNU" que temos tido na Europa nos últimos anos e neste ano nos EUA, na Conferência LibrePlanet da FSF. Esses encontros são uma oportunidade para os que contribuem para o GNU possam se encontrar e discutir seu trabalho em pessoa -- assim como olhar para frente e ver como poderemos responder às novas ameaças à liberdade.
No ano passado eu me tornei membro do Comitê de Aconselhamento do GNU que promove teleconferências regulares para ajudar a coordenar alguns dos assuntos do dia-a-dia do projeto GNU, tais como organizar esses encontros, por isso tenho dispendido um bocado de tempo nisso, hoje em dia.
REL: A GNU GPL é considerada como uma das contribuições mais importantes do projeto GNU, mas GNU engloba muito mais: um sistema operacional completamente Livre. O que o GNU anda aprontando hoje em dia, e do que os desenvolvedores do projeto GNU podem se orgulhar nos últimos anos?
BJG: Tecnicamente, o projeto GNU é focado hoje na melhoria do software existente, como o GCC e o Emacs, para mantê-los atualizados com os novos desenvolvimentos, e naquelas áreas onde precisamos de programas totalmente novos -- os "Projetos de Alta Prioridade" (http://www.fsf.org/campaigns/priority.html) como o Gnash, o projeto do GNU para substituição do Flash; GNU PDF, que tem por objetivo ser uma implementação completa do padrão PDF tanto para leitura, quanto para escrita. GNUstep está atingindo um alto nível de compatibilidade com o framework Openstep (Cocoa) e ajudará as pessoas a escapar da plataforma privativa MacOS.
Também estamos encontrando novas áreas onde o software livre pode ser melhorado -- por exemplo, recentemente o projeto GNU lançou uma nova iniciativa de acessibilidade (http://www.gnu.org/accessibility/accessibility.html) para assegurar que pessoas com deficiência tenham a mesma liberdade que outros usuários do software livre. Atualmente, muitos programas livres não são acessíveis, e queremos que todo programa GNU seja acessível e todo desenvolvedor tenha a acessibilidade em mente quando fizer um programa.
Olhando para alguns anos atrás, o trabalho do GNU Classpath e das equipes do GCJ são exemplos notáveis do valor do trabalho pela liberdade e da substituição de software não livre que as pessoas aceitam por estar disponível sem custo. Quando o Java foi finalmente liberado como software livre pela Sun em 2006, ele estava sob a mesma licença do GNU Classpath e agora temos um ambiente Java completamente livre nos sistemas GNU/Linux (com o nome de IcedTea). O GNU Classpath foi um dos projetos de alta prioridade por esse motivo, por causa do problema de programas livres em Java terem de depender de implementações não livres de Java, às quais RMS chamou a atenção lá em 2004.
Você mencionou a GPLv2 e, claro, houve uma grande atualização da GNU GPL (General Public License, ou Licença Pública Geral) para a GPL versão 3 em 2007, seguindo um processo de consulta pública mundial envolvendo vários projetos de software livre, empresas e especialistas em legislação. A atualização tornou a licença mais fácil de ser usada pelos desenvolvedores e removeu incompatibilidades desnecessárias com outras licenças de software livre semelhantes. Ela também deu aos projetos de software livre novas proteções de patentes de software e tentativas dos fabricantes de contornar as liberdades das licenças utilizando dispositivos bloqueados e DRM (Digital Restrictions Management, ou Gerência Digital de Restrições). Naquela época, algumas pessoas viram pouca necessidade de proteções adicionais, mas agora vemos a nova geração de dispositivos de computação privativos que são completamente bloqueados e usam a DRM para restringir seus usuários. Portanto eu acho que aquelas proteções da GPLv3 provarão ter sido visionárias e agora são mais importantes do que nunca. Eu encorajo todos que desenvolvem software livre a se atualizarem para a GPLv3, caso ainda não o tenham feito.
Olhando para o futuro, nós queremos assegurar que todos tenham liberdade ao usar a Internet. RMS falou recentemente a respeito dos perigos do "Software como Serviço" na Conferência LibrePlanet da FSF. http://www.gnu.org/philosophy/who-does-that-server-really-serve.html Se utilizamos serviços privativos na Web para executar tarefas que poderíamos fazer em nossos próprios computadores com software livre, abrimos mão de nossa liberdade -- isso é algo que devemos evitar.
Para tarefas como processamento de textos, podemos simplesmente utilizar um software livre em nossos computadores. Para tarefas que necessitarem de servidores, precisaremos de alternativas. Uma maneira é ter software livre suficiente para que as pessoas possam ter seus próprios servidores em casa ou na sua organização.
Há alguns projetos GNU novos que começam a oferecer tais softwares, como o GNU FM para compartilhamento de música e o GNU Social para redes sociais -- eles estão procurando por mais voluntários. A licença para eles é a GNU AGPL (Licença Pública Geral Affero) -- ela é similar à GPL mas, se alguém roda um programa sob a AGPL num servidor Web e permite que outros o utilizem, eles devem permitir que outros baixem o código fonte. O microblog identi.ca (agora conhecido como Status.net) é outro exemplo de um serviço popular sob a AGPL que você pode baixar e rodar no seu próprio servidor.
Na verdade, o projeto GNU e a FSF têm oferecido serviços livres utilizando a AGPL há um bom tempo através do serviço de hospedagem de projetos Savannah, que está sob a AGPL. Há atualmente mais de 3.200 projetos de software livre utilizando o Savannah e cerca de 50.000 usuários. O Savannah utiliza apenas software livre e há um link de download em todas as páginas, através do qual qualquer um pode baixar o código fonte completo do site. Também existem oportunidades para voluntários ajudarem no desenvolvimento do Savannah e trabalhar nas solicitações de suporte.
REL: Apesar disso tudo, várias pessoas sugerem que o projeto não é mais relevante, porque reconhecem o GNU apenas pelas ferramentas de desenvolvimento e pela GNU GPL.
RMS: Quando as pessoas estão familiarizadas apenas com uma pequena parte daquilo que fazemos e pensam que não é muito, o problema está na ignorância delas, não nas nossas realizações. Não importa quanto bem façamos, não nos ajudará a ganhar apoio se as pessoas o atribuírem a outros.
REL: Claro, mas deixar essa percepção errada se espalhar prejudica o GNU e o Movimento Software Livre. O que você recomenda para tentar corrigi-la?
RMS: Além de explicar esse ponto para as pessoas como parte da explicação a respeito do software livre, devemos oferecer nosso tempo, esforço e nomes para atividades que dão crédito ao GNU. Há várias delas que podem utilizar nossa ajuda, portanto não faltarão coisas úteis para fazer.
REL: O Linux e a maior parte das distribuições GNU/Linux incluem Software não-Livre, o que significa que eles não entendem, ou não compartilham das metas e da filosofia do Software Livre. O que o GNU e a FSF fazem a respeito dessa questão?
RMS: Recomendamos apenas distribuições que têm uma política firme de não encaminhar o usuário para o software não livre, e explicamos a razão ética para isso.
BJG: No sítio do GNU na Internet existe uma lista de diretrizes que uma distribuição deve seguir para ser chamada de livre e encorajamos as pessoas a utilizar as distribuições que as seguem (as diretrizes estão em http://www.gnu.org/distros/ assim como uma lista das distribuições).
As diretrizes são bastante simples -- o ponto principal é que deve haver uma política clara de somente distribuir software livre, e que ela seja aplicada a todo pacote de maneira consistente, sem exceções para "casos especiais".
Algumas distribuições têm uma política de utilizar apenas software livre, mas não a aplicam totalmente porque ignoram as "bolhas" de software não livre em alguns drivers de dispositivos no kernel Linux. Isso é uma vergonha, porque seria fácil para eles dar a seus usuários uma distribuição 100% livre usando a versão Linux-libre do kernel que não as contém.
REL: Como alguém se torna um desenvolvedor do GNU?
BJG: Há muitas maneiras de contribuir para o GNU e ser um desenvolvedor é apenas uma delas. Escrever documentação, contribuir com traduções, testar e auxiliar no Savannah.gnu.org, o sítio de hospedagem do GNU, também são importantes. Existe uma página na web que explica as disferentes formas de se envolver com o projeto em http://www.gnu.org/help/help.html.
Para quem for muito dedicado, existe uma lista dos projetos de alta prioridade em http://www.fsf.org/campaigns/priority.html. A lista tem sido reduzida gradualmente -- recentemente, dois brasileiros, Rodrigo Rodrigues da Silva e Felipe Sanches, têm feito bons progressos em um item destacado há muito tempo, uma biblioteca para converter arquivos salvos no formato privativo do AutoCad para formatos livres. Isso é essencial para permitir que as pessoas migrem para softwares CAD livres, devido à grande disseminação do uso de arquivos AutoCad nessa área.
REL: Agradecemos a vocês dois pelo tempo e pela dedicação ao GNU e à Liberdade de Software. Algumas palavras finais para nossos leitores?
BJG: Estamos organizando encontros regionais dos contribuidores do GNU em todo o mundo, e ouvimos falar que Rodrigo e Felipe estarão organizando um na conferência FISL (de 21 a 24 de julho) em Porto Alegre. Portanto, gostaria de incentivar a qualquer um que esteja interessado em contribuir para o GNU a juntar-se a eles neste inverno -- os detalhes do evento serão divulgados na nossa página de eventos em http://www.gnu.org/ghm/.
RMS: Milhares de pessoas têm trabalhado para tornar possível aos usuários de hoje utilizarem um computador e ter controle sobre o que ele faz. Em 1983 isso era quase impossível, porque primeiro você teria de escrever um sistema operacional livre. Nós o escrevemos, e atingimos um patamar no qual rejeitar o software não livre e o SaaS é perfeitamente possível com algum esforço. Entretanto, gostaríamos de tornar isso fácil e indolor o tempo todo, e ainda tem chão até chegar lá. Agradeço por nos ajudar a fazê-lo.