Perigo Virtual e Imediato
Alexandre Oliva
Publicado na nona edição, de dezembro de 2009, da Revista Espírito Livre.
No filme “Ameaça Virtual”, os mocinhos derrotaram o vilão publicando,
sem autorização, mas como contribuição para a humanidade, o programa
de controle de uma rede de satélites de comunicação já usado para
inúmeros ilícitos e crimes. Na vida real, um juiz no Paraná decidiu
que é ilícita a publicação de um programa de comunicação em rede,
mesmo com autorização, porque poderia ser usado para ilícitos. Dura
lex, sed lex? Não, não foi problema de lei dura, mas de leitura: um
jurista tropeçou na interpretação, mas quem acabou caindo foi o juiz.
http://www.internetlegal.com.br/2009/09/tjpr-decide-que-e-ilicito-o-uso-de-software-p2p-para-baixar-arquivos-pela-internet/
É certo que toda possibilidade de comunicação é vista pela indústria fonográfica, que moveu o processo, como ameaça para seu obsoleto modelo de negócios. Para ela, um programa para receber e transmitir arquivos quaisquer virou um vilão a ser exterminado do futuro, do presente e, quando a Skynet tomar consciência, até do passado.
Em primeira instância, o juiz percebeu o absurdo de impedir a livre distribuição do programa autorizada por seu titular, dados seus inúmeros usos lícitos. Seria como proibir o comércio de facões para evitar cenas como as de Psicose, ou de motosserras para evitar as do Massacre da Serra Elétrica.
Mas os membros da indústria fonográfica, velozes e furiosos em sua cruzada cons-Piratória, recorreram e conseguiram uma decisão apoiada em argumento tão torto e amplo que, caso se sustentasse, representaria um perigo real e imediato para todos. Tornaria igualmente ilícita a distribuição ou comercialização de satélites e antenas de comunicação, modems, telefones, videocassetes, câmeras, computadores em geral, sistemas operacionais, servidores e programas de navegação na Internet, programas para gerência de controle de lojas virtuais, programas para reprodução de música e filmes e para correio eletrônico, microfones, papel, caneta e qualquer outro “sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda” (Lei 9610, art 29/VII). Forçando só um pouquinho, proibiria o comércio até de facas e motosserras, para deleite dos desafetos do suspense no cinema.
“O juiz errou,” ex-plica o ex-juiz e ex-terminador Arnold Cæsar Schwartze Rabbit, “a regra é clara.” A lei exige autorização do titular de direito autoral de uma obra para a distribuição “da obra mediante tais sistemas”, não dos sistemas propriamente ditos.
O programa motivo do processo, embora permita ao usuário selecionar arquivos para baixar, inclusive obras autorais, não realiza todo o processo: inúmeros outros sistemas são indispensáveis para que o processo funcione. Além do programa, é necessário um sistema operacional, um sistema computacional (processador, memória, disco rígido, mouse, teclado, tela), um ou mais sistemas de telecomunicação (modem, roteadores, cabos, antenas e satélites), e sistemas reciprocamente equivalentes juntos a alguém disposto a transmitir os arquivos.
Cada um desses sistemas habilita o usuário a realizar a seleção da obra, a recebê-la e a percebê-la, portanto a distribuição de cada um deles seria proibida se aplicado o mesmo argumento, não importando os usos lícitos. De fato, um sistema operacional típico demonstrou ser suficiente, no computador usado para compartilhamento de obras descoberto há algum tempo no Senado Federal brasileiro. Vários desses sistemas oferecem até a previsibilidade estabelecida em lei, ao contrário do programa de recepção P2P em questão, em que “quem formula a demanda” não tem possibilidade alguma de determinar previamente o tempo em que poderá perceber a obra, se é que a receberá.
Previsibilidade suficiente para se enquadrar nos ditames da lei oferecem sistemas como videocassetes, reprodutores de DVDs, programa de computador para reprodução de áudio e vídeo, até mesmo aqueles presentes em câmeras fotográficas e de vídeo. Segundo o argumento que apoiou a decisão, caso possam ser usados para permitir ao usuário escolher onde e quando assistir a uma obra qualquer, sem autorização de seu titular, seu comércio deve ser proibido.
Mas o trecho da lei que apoiou a decisão, se lido da forma distorcida que norteou a decisão, proibiria qualquer sistema que permitisse a mera seleção de obras para apreciação em hora e local determinados, ainda que as obras não fossem percebidas ou distribuídas através do sistema. O microfone do karaoke pode ser usado para amplificar a execução de uma canção sem autorização, assim como para incitar à violência, mas nem por isso seu comércio seria proibido. Mas, pela leitura proposta, deveria ser, porque alguém poderia, através dele, solicitar a execução pública não autorizada de uma obra.
Pelo mesmo argumento, como alguém poderia oferecer um sistema de venda de cópias não autorizadas de obras autorais através de telefone, teria de ser proibida a venda de telefones. Como se poderia efetuar a seleção através de loja virtual, em que programas de gerência de loja, servidores de páginas de Internet e navegadores cumpririam papéis essenciais para possibilitar a seleção, cada um deles teria de ser proibido. Já que a seleção poderia ser feita através de correio eletrônico, seriam banidos os programas de correio eletrônico, e como o correio convencional seria alternativa viável, adeus lápis, papel, caneta e envelope. O recurso de utilizar para seleção de obras marcas feitas a faca em muros previamente combinados, ou com motosserras em árvores, levaria à proibição de facas, muros, motosserras e árvores... Absurdo, não?
Baixaria
Outro argumento estranho acatado pelo juiz foi de que o download, isto é, a recepção de cópia de uma obra, pode ser infração de direito autoral. Não há menção na lei de direito autoral à necessidade de autorização para receber cópias, e é assim que deve ser. Não fosse, imagine receber, pelo correio convencional ou eletrônico, de remetente não identificado, cópias de obras autorais para, em seguida, receber do titular da obra oferta de acordo oneroso de licenciamento da obra, acompanhado de ameaça de processo judicial caso você não o aceitasse.
Seria um modelo de negócios extremamente lucrativo para titulares de direitos autorais inescrupulosos, se encontrasse respaldo na lei. É falacioso e perigosíssimo argumentar que esse modelo se torna viável pelo simples fato de a recepção das obras se dar através da Internet, por e-mail ou por acesso a páginas.
Acessar páginas na Internet, seguir enlaces enviados por outros, abrir e-mails, tudo isso envolve receber não só o texto da página ou da mensagem, mas imagens, sons, audiovisuais e programas de computador que as páginas contenham, muitas vezes por referência, de tal forma que se efetuam downloads adicionais sem intervenção do usuário. Quando se segue um enlace, não se sabe de antemão se sua visualização envolve receber obras então distribuídas por terceiros, que talvez não tenham as permissões necessárias para a transmissão. Não faz sentido punir o receptor que não tem como saber de antemão nem quais obras vai receber, muito menos como verificar se o transmissor tem todas as permissões necessárias para efetuar a transmissão. “A regra é clara, não cabe penalidade", intervém novamente Arnold Cæsar Schwartze Rabbit, “impedimento não se aplica quando quem recebe está no campo de defesa.”
Impropriedade
Acata também o juiz a falsa noção de que direito autoral se trata de propriedade sobre a obra, e que portanto necessita ser protegido a mando da Constituição Federal Brasileira. Não há respaldo na lei para tal presunção. Ao contrário, não há uma menção sequer a termos como proprietário ou dono na lei de direito autoral. Há as figuras de autor e de titular dos direitos patrimoniais, mas se entende, desde as origens do direito autoral, que obras autorais pertencem à sociedade, que, a fim de incentivar sua publicação, concede aos autores o privilégio de um poder temporário de exclusão de certos tipos de usos da obra. O direito autoral patrimonial é um bem artificial, apropriável e perecível, que estabelece amarras limitadas e temporárias nas obras autorais, estas bens sociais, públicos e potencialmente perenes.
Há uma campanha internacional iniciada há poucas décadas para distorcer leis de direito autoral e outras que em quase nada se assemelham, para que opinião pública, leis, constituição e jurisprudência considerem obras e invenções como propriedade, justificando assim toda sorte de abusos, restrições, impedimentos e extensões de prazos, que roubam da sociedade os benefícios que levaram à concessão de privilégios monopolistas como o direito autoral. “Meter a mão, não pode! A regra é clara, o juiz deve interromper o lance!”
Final dramático
Há juízes que não percebem essa tentativa de distorção das leis e acabam agindo com base numa visão parcial, incompatível com a imparcialidade que se exige de sua profissão. “Lei da vantagem não quer dizer dar vantagem para um dos times!”, comenta revoltado Walter CasaMonstro. Com o gol que deveria ter sido anulado, o placar ficou injusto e assim o jogo vai se arrastando para a prorrogação, num final dramááático, para desespero de toda a nossa torcida.
Mas torcida e regulamento estão a nosso favor, aqui e no mundo inteiro. Ameaça virtual, perigo real e imediato, só se o juiz estivesse jogando para os adversários, cada vez mais velozes e mais furiosos. Esperamos que não, que ele só tenha se enganado, já que o jogo é difícil e a pressão é grande. Vamos torcer para que não cometa o mesmo erro de novo.
Bem, amigos, vamos chegando ao final do tempo regulamentar... Assista em breve aos melhores momentos. Voltaremos com novos lances logo após as cerimônias de encerramento, adicionando ao brilho dos fogos de artifício o desejo e a esperança de que o futuro traga paz, saúde, sucesso e justiça!
Copyright 2009 Alexandre Oliva
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