Tron: Jogando por Liberdade

Alexandre Oliva

Publicado na quarta edição, de julho de 2009, da Revista Espírito Livre.

Quem não lembra do zumzumzum sobre o filme “Tron, uma Odisséia Eletrônica”, em meados dos anos 1980? Na época eu brincava com videogames, era fascinado por programação e me interessei muito pelo filme. No entanto, por alguma razão, não assisti a esse marco na história da ficção científica e dos efeitos especiais antes de esbarrar nele, outro dia, numa loja de DVDs na Internet.

Embora a história seja interessante e sedutora como tantas outras batalhas entre o bem e o mal, e os efeitos de computação gráfica ainda impressionem, levando-se em conta sua idade, o que me fez vibrar foram frases como “Esta é a chave para uma nova ordem! Este disco de código significa liberdade!”, “Meu usuário tem informação que poderia... que poderia tornar este sistema novamente livre!” e “Este é o Tron. Ele luta pelos usuários.” Fez-me pensar se Richard Stallman foi inspirado pelo filme, lançado pouco mais de um ano antes do projeto GNU.

Tron, pra quem não sabe ou não lembra, era um programa escrito para monitorar as comunicações do mainframe da ENCOM, computador controlado pelo malévolo Master Control Program, ou MCP, anagrama do então prevalente CP/M. Kevin, brilhante ex-funcionário da ENCOM e autor de vários jogos eletrônicos por ela comercializados, tentava invadir o mainframe para reunir provas de que era ele o autor dos jogos que valeram muitas promoções ao executivo que assumiu sua autoria, numa jogada que lembra a compra do Quick and Dirty Operating System pela Microsoft para fornecer o sistema operacional para o IBM PC, assim como vários lances ainda mais traiçoeiros entre Microsoft e Apple retratados no filme “Piratas do Vale do Silício”.

MCP reclamou ao executivo sobre Tron: “Não posso tolerar um programador independente me monitorando. Você tem ideia de quantos sistemas eu invadi, de quantos programas eu me apropriei?”. Bloqueou o acesso de Tron e seu autor, que recorreu então à ajuda de Kevin. Este acaba sendo “digitalizado” por uma máquina desenvolvida por um cientista que, em discussão com o executivo, afirma que “É para atender às requisições dos usuários que servem os computadores!”, de que o executivo discorda: “Servem para promover nossos negócios”. Estava aí plantado o embate entre o controle das computações pelos usuários e por aqueles que se creem no direito de obter vantagens abusivas privando-os desse controle, através de negação de código fonte, Gestão Digital de Restrições (DRM), Tivoização, direito autoral, patentes, EULAs e por aí vai.

Kevin, digitalizado, encontra Tron, feito à imagem e semelhança de seu autor, e muitos outros programas apropriados pelo MCP. São todos obrigados a atuar em jogos eletrônicos, como gladiadores nos circos do Império Romano. A preocupação com usuários era ridicularizada e condenada: “O MCP os escolheu para servir o sistema na arena de jogos. Aqueles que continuarem a professar a crença nos usuários receberão o treinamento padrão abaixo do padrão, o que acabará resultando em sua eliminação. Aqueles que renunciarem a essa crença supersticiosa e histérica serão elegíveis para a Elite Guerreira do MCP.”

Um programa de cálculo de juros compostos manifestava sua frustração com os desmandos do MCP: “Fala sério! Mandar-me aqui para atuar em jogos?! Quem ele calcula que é?” Para um guarda do MCP, ameaçava: “Vocês vão deixar meu usuário muito bravo!”, ao que o guarda respondia com escárnio: “Que maravilha! Outro maluco religioso!” Na época, ainda não chamavam aqueles como nós, que lutamos pelos usuários, de xiitas ou fundamentalistas.

Depois de jogar e vencer, Kevin (“Do outro lado da tela parecia bem mais fácil!”) e Tron acabam escapando da arena de jogos e, após perseguições e batalhas emocionantes no espaço virtual, chegam ao MCP e previsivelmente o derrotam, libertando o sistema, os programas, as linhas de comunicação e os usuários. Embora algum conhecimento de informática ajudasse a entender alguns dos chistes do filme, como o “End Of Line”, ou “Fim da Linha”, com que o MCP terminava suas conversas, não precisa ser nem software nem desenvolvedor para compreender por que foi tão comemorada a queda do MCP na ficção.

Já no mundo real, o MCP continua espalhando o terror entre jogos e outros tipos de programas, através de DRM, formatos de arquivo e protocolos secretos, falta de acesso ao código fonte, desvios de padrões estabelecidos, introdução à força de falsos padrões, computação em nuvem, licenças excessivamente limitadas, EULAs cada vez mais abusivas e ameaças através de patentes de software. Se o MCP se valia, para acumular poder, de acesso indevido a computadores de terceiros, um dos motes do AI-5.0 do Senador Azeredo, outros vilões visionários da vida real tentam levar a cabo o desastre que previu Bill Gates em 1991: “Se houvessem entendido como patentes seriam concedidas quando a maior parte das idéias de hoje foram inventadas e houvessem obtido patentes, a indústria estaria totalmente estagnada.”

Não ajuda quando desviam o foco dos Trons, que lutam pelos usuários, e glorificam os Kevins, que entraram na história em busca de diversão e atrás de seus próprios interesses mesquinhos. É como glorificar o mercenário Han Solo, de Guerra nas Estrelas, por seu papel na vitória da Aliança Rebelde, esquecendo de todo o trabalho anterior feito pelos rebeldes e do total descomprometimento de Han Solo com a causa. Não é à toa que, quando a FSF foi agraciada com o “Prêmio Linus Torvals” na [GNU/]LinuxWorld de 1999, Richard Stallman traçou esse paralelo: “É tão irônico como conceder o Prêmio Han Solo à Aliança Rebelde.” Linus e Kevin apenas por acaso participaram de batalhas cruciais na longa luta pelos usuários e certamente não tomam partido nessa guerra, assim como Han apenas por acaso participou de uma batalha contra o Império.

Como cada vez mais interesses mesquinhos cooptam Linuses, Kevins e Hans, que perseguem, como sempre fizeram, seus próprios interesses, precisamos de cada vez mais Richards e Trons para fortalecer a Aliança Rebelde na luta pelas liberdades cerceada pelos MCPs e pelo Império. Vamos lutar pelos usuários e jogar o jogo para reconquistar nossas liberdades, ou deixar os MCPs tomarem o controle de tudo e darem a última palavra até o “Fim da Linha”?


Copyright 2009 Alexandre Oliva

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