Copiar e Compartilhar em Legítima Defesa

Alexandre Oliva <lxoliva@fsfla.org>

Baseado nos direitos humanos largamente reconhecidos e raramente desrespeitados de apreciar e memorizar obras de arte a que se tenha acesso e de conceder e aceitar acesso a elas, este artigo afirma os direitos de preservar acesso a obras, de convertê-las para diferentes formatos e suportes físicos, para baixar e subir obras na Internet, e para receber e compartilhar obras em redes P2P. O pleno gozo desses direitos constitui legítima defesa contra os constantes ataques a eles.

Não devemos nos sentir culpados ou envergonhados por compartilhar e baixar arquivos digitais. No entanto, a lavagem cerebral promovida pelas indústrias editoriais de música, cinema e software distorce nossas noções de certo e errado. Confusos e assustados, abrimos mão de direitos e aceitamos leis restritivas que servem à sua ganância, em detrimento da sociedade. Argumentando que leis assim distorcidas nos provam errados e culpados, elas buscam ainda mais poder legal sobre nós, enquanto fingem já tê-lo. Mas não têm e não podem ter, enquanto houver respeito aos nossos direitos humanos.

Nota: o autor não é advogado. Nada neste artigo deve ser tomado como aconselhamento legal. Porém, se você for um dia ameaçado ou processado pelas indústrias editoriais ou pelas forças policiais anti-cópias que elas têm instituído, mostre este artigo ao seu advogado.

O direito de apreciar

Artigo 27º. (1) Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.

Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10 de dezembro de 1948

Se você estiver andando na rua e encontrar uma carteira no chão, você provavelmente a pegará e tentará encontrar seu dono para devolvê-la. Se, ao procurar documentos que o identifiquem, você encontrar um pedaço de papel com um poema, é direito lê-lo. Você não precisa pedir permissão (licença) do autor do poema, nem do dono da carteira: você tem o direito de lê-lo e apreciá-lo. Desde que o devolva ao lugar, não terá tirado nada de ninguém. Por outro lado, pegar dinheiro da carteira não seria direito, pois privaria dele seu legítimo dono. Indústrias editoriais tentam nos confundir escondendo essa diferença crucial.

Se você caminha mais um pouco e escuta um vizinho cantar uma música no chuveiro, está no seu direito. Você não tem de pedir permissão (licença) do compositor da música, nem do artista que a executa: você tem o direito de escutá-la e apreciá-la, e até de memorizá-la para cantar para si mesmo e para seus amigos mais tarde.

Você escuta os sinos da igreja e sabe que nessa hora seu vídeo-cassete estará se desligando, depois de gravar seu programa favorito na TV aberta, para que você possa assistir-lhe quando chegar em casa depois do trabalho. Você não precisa pedir permissão (licença) do diretor, do estúdio ou da transmissora do canal de TV: você tem o direito de gravar e assistir ao programa mais tarde, com sua família e seus amigos.

Você chega em casa, liga seu computador portátil e põe em seu leitor um DVD que alugou. Você não tem de pedir permissão (licença) do diretor, do estúdio, do distribuidor ou da locadora para assistir ao filme, e isso envolve tarefas como copiá-lo do DVD pra memória do computador, desembaralhar a codificação regional, descomprimir o vídeo e o áudio, copiar o vídeo pra memória do monitor digital e convertê-lo para padrões de pontos na tela e depois ondas luminosas, copiar o áudio para o amplificador digital e convertê-lo para vibrações mecânicas e depois ondas sonoras e por fim converter isso tudo em impulsos neurais e em memórias temporárias ou permanentes. Como você tem o direito de assistir ao filme, pode copiar, converter, memorizar e repetir o todo ou as partes, sem depender de permissão de ninguém.

O direito de apreciar uma obra artística a que se tenha acesso é uma questão prática. Seria ridículo ter de pedir permissão antes de ler um pedaço de papel, para, uma vez a tendo obtido, descobrir que a permissão já estava explícita no papel. Seria ridículo ter, de alguma forma, de deixar de ouvir uma música que está tocando ao seu redor. Seria ridículo ser privado de um programa de TV só porque ele vai ao ar, para todos, num horário inconveniente. Seria insano ter de pedir permissão para cada um dos passos de conversão e cópia envolvidos na apreciação de uma obra artística. Seria insano ter de pedir permissão para reter a obra na memória, ou forçar-se a esquecer caso não encontre quem a pudesse e quisesse conceder.

Ainda bem que não é assim! Não há nada de errado em fazer tudo isso, e não há lei que o impeça de fazê-las. Não deve haver: seria injusta e violaria direitos humanos fundamentais. Você tem o direito de apreciar obras artísticas a que tenha acesso, e de tomar parte na vida cultural de sua sociedade. Lei alguma jamais deve tirar-lhe esse direito.

O direito de compartilhar

Artigo 19º. Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão.

– Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10 de dezembro de 1948

Digamos que você tenha uma vasta coleção de livros e fique desapontado porque poucas pessoas têm chance de lê-los. Decide doá-los a uma biblioteca pública. Não precisa pedir permissão de ninguém para fazer a doação, e a biblioteca não precisa pedir permissão de ninguém para emprestar os livros a quem quer que tenha interesse neles.

Se fosse do jeito que as indústrias editoriais querem, você teria de trancar suas coleções de CDs, fitas, DVDs e livros em cofres quando tivesse visitas, temendo que tomassem alguns deles emprestados. Ao invés disso, você tem o direito não só de mostrá-los, mas também de executá-los para seus visitantes e deixar que levem emprestadas as suas cópias e as escutem, vejam ou leiam quando e onde queiram.

Leis que proibissem recepção e difusão de informações e idéias violariam direitos humanos fundamentais.

O direito de preservar

Artigo 28º. Toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efetivos os direitos e as liberdades enunciadas na presente Declaração.

– Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10 de dezembro de 1948

Quando você compra CDs, DVDs, livros, etc, o que você compra é o acesso à obra, não seu suporte físico nem uma suposta licença para apreciá-la: você não precisa de licença para isso. De fato, se o suporte físico for danificado, qualquer editora decente vai substituir a cópia danificada da obra, por não mais que uma taxa nominal que cubra custos do suporte físico, do empacotamento e do envio, de modo que você possa manter o acesso pelo qual pagou.

Se a editora for à falência ou não tiver mais cópias, você não precisa deixar sua única cópia da obra se degradar até perder acesso a ela. Se a editora não for decente, pode até planejar a degradação das cópias, de modo a vender acesso repetidamente até passar a negar acesso à obra, indefinidamente, a toda a sociedade. Um plano assim não deve funcionar. De fato, diversas jurisdições permitem explicitamente, sem sombra de dúvida, cópias de reserva e cópias para uso pessoal, a despeito de quaisquer direitos exclusivos de cópia de uma obra artística que a sociedade possa haver concedido a outros.

Essa permissão explícita, mesmo bem-vinda, não é estritamente necessária. É direito recordar obras a que tenha tido acesso. Porém, poucos têm memória perfeita ou fotográfica, então somos ensinados a usar memória auxiliar para guardar coisas relevantes: tomar notas de aulas, reuniões e descobertas, tirar fotos e gravar filmes de eventos importantes de nossas vidas, e até mesmo fazer cópias de reserva de informação que armazenamos em memória principal e auxiliar.

Uma cópia de reserva de uma obra nada mais é que uma extensão de memória, para que você possa se lembrar mais precisamente e melhor da obra, para recordá-la e apreciá-la mais tarde.

Nenhuma lei pode ou deve impedir você de manter memórias e apreciá-las, pois sem memória, os direitos de apreciar e de compartilhar não podem ser plenamente realizados.

O direito de converter

Na mesma linha, se seus velhos LPs e fitas cassete estão estragando e você se preocupa em conseguir agulhas, ímãs e motores para consertar os aparelhos que os tocam, caso quebrem, você pode encontrar conforto no seu direito de preservar seu acesso às obras, mesmo que isso exija sua conversão para outro formato e sua armazenagem noutras formas de memória auxiliar.

Digamos, você pode tocá-las para seu computador e registrá-las em memória eletrônica, magnética, ótica ou de qualquer outro tipo, para estender para o futuro a sua possibilidade remanescente de executar as obras tanto quanto queira.

Você pode ainda converter as obras para formatos de codificação diferentes, se é disso que precisa para poder apreciá-las dirigindo seu carro, caminhando na rua ou sentado num ônibus ou trem, com um reprodutor portátil de música ou vídeo, ou outro tipo de computador.

Lembre-se: não há, e não deve haver, qualquer lei que o impeça de copiar e converter obras como passos acessórios no processo de apreciá-las, ou de fazer cópias de reserva dos resultados desses passos acessórios para uso futuro. Você não deve ficar sujeito às limitações de meio, formato e reprodutores selecionados por quem lhe tenha dado acesso a uma obra: uma vez que você ganhe acesso a ela, você tem o direito de apreciá-la como quiser.

O direito combinado de compartilhar e preservar

Digamos que uma amiga quer tomar um DVD emprestado de você, mas o cachorro dela é famoso por seu gosto por DVDs. Você pode considerar negar o pedido da sua amiga, mas por que deveria? Você pode muito bem fazer uma cópia de reserva do DVD, para preservar seu acesso à obra, e então deixá-la levar pra casa a cópia "original", ou a cópia de reserva que você fez.

Sua amiga, por sua vez, pode não conseguir assistir ao filme antes da hora em que combinou devolvê-lo, ou querer assistir-lhe mais algumas vezes. Para preservar seu acesso, estendendo sua memória e deslocando no tempo sua possibilidade de apreciar a obra tantas vezes quantas quisesse, ela poderia devolver-lhe a cópia depois de fazer sua própria cópia de reserva. Ou ligar pra perguntar-lhe se pode ficar com ela. Ela pode até deixar de ligar, se souber que você vai ligar pra ela se um dia precisar.

De fato, você pode até ter um acordo com ela, para manterem cópias de reserva um para o outro. Até mesmo através da Internet! Apesar de cada um de vocês manter outras cópias de reserva em casa, isso não protegeria os arquivos em caso de incêndio, por exemplo.

Então, ela reserva parte do espaço em disco no computador dela para você fazer suas cópias de reserva, e você reserva parte do seu para ela. Vocês confiam o suficiente um no outro para não se preocuparem com questões de privacidade, mas também sabem que estão copiando as coleções de fotos, músicas e filmes um do outro, e que isso é tão direito como se as fotos, músicas e filmes tivessem cópias de reserva noutro endereço em CDs, DVDs, fitas, o que fosse.

E aí, como você não é obrigado a policiar o acesso às obras (de fato, vimos que tem o direito compartilhá-lo com seus amigos), você não precisa criptografar os dados ou exigir que ela concorde em nunca acessar aqueles arquivos.

Seu acordo pode até incluir um entendimento de que vocês concordam que um acesse fotos, músicas e filmes nas cópias de reserva mantidas para o outro. Nenhuma permissão adicional se faz necessária.

Os direitos de baixar e subir arquivos

Digamos que você vai sair de viagem, levando no computador portátil uns textos que quer ler. Preocupado com furto e perda, coloca os arquivos no seu sítio na Internet também, de modo que possa ter acesso a eles em qualquer cibercafé. Não precisa de permissão de ninguém pra fazer isso: você está apenas preservando seu acesso a eles.

Os arquivos estão lá para uso pessoal, então a princípio você não diz as URLs a ninguém. Porém, durante a viagem, você recebe um correio eletrônico de uma amiga, perguntando sobre um artigo que você uma vez mencionou. É um dos artigos que você colocou no sítio, então você lhe manda a URL. Você tem o direito de compartilhar obras a que você tenha acesso com amigos. O fato de você não poder encontrá-los pessoalmente para lhes entregar cópias em mãos, em meio físico, não deve ser impedimento. Seus amigos, por sua vez, têm o direito de apreciá-las e preservá-las uma vez que você lhes conceda acesso. Nenhum de vocês precisa pedir permissão pra ninguém.

Sua amiga repassa a URL pra um amigo, que então a envia para uma lista de e-mail privada, e a mensagem acaba sendo repassada para uma lista pública. Gente de todo canto começa a baixar o arquivo do seu sítio. Tudo bem, você tem o direito de compartilhar a obra com cada um deles. Mesmo que não tivesse, você não é obrigado a policiar o acesso ao sítio, assim como não é obrigado a esconder sua coleção de DVDs quando recebe visitas. Da mesma forma, aqueles que baixam o arquivo não são obrigados a policiar se você tem quaisquer permissões que poderia precisar para lhes conceder acesso à obra, assim como não teriam de verificar se você tem o direito de lhes emprestar um DVD.

O direito de P2Preservar

Seu arranjo de cópias de reserva cruzadas funciona tão bem que, quando você lê a respeito de um sistema distribuído par-a-par de cópias de reserva, você entra com entusiasmo. Como antes, cada par oferece parte de seu disco rígido para armazenar cópias de reserva para os outros, e por sua vez ganha cópias de reserva de porções de seus discos na rede.

Uma das maiores vantagens é que as cópias são replicadas entre vários pares, de forma que, mesmo que alguns saiam da rede, os arquivos de reserva permaneçam disponíveis. O sistema também é inteligente o suficiente para perceber quando vários usuários querem fazer cópia de reserva do mesmo arquivo, evitando desperdícios.

É claro que você mantém seus arquivos pessoais criptografados numa rede como essas, pois você não confia em todos tanto quanto na sua amiga. Mas para arquivos que você normalmente compartilharia com amigos, por que impediria a redução de desperdício?

Um dia chega um correio eletrônico de uma participante da rede P2P, perguntando se você tem alguma objeção a ela manter uma cópia de uma música que descobriu estar guardando de reserva para você. Que pergunta boba! Ela já estava mantendo aquela cópia, e ela evidentemente já tinha ganho acesso à música, então é óbvio que ela poderia preservá-lo. Mas ela achou que não faria mal perguntar. Não fez: deu início a uma bela amizade.

O direito de P2Participar

Um dia, você remove acidentalmente um arquivo de seu computador. Pede pra rede restaurar a cópia de reserva, e vê que ela é restaurada tão depressa que mal pode acreditar! Por coincidência, outro par tinha acabado de fazer uma cópia de reserva do arquivo na rede, e aconteceu de ela ter sido transferida pro seu computador pouco antes de você pedir a restauração.

Pois essa pessoa parece gostar das mesmas músicas que você. Você reconhece a maioria delas, mas parece que há algumas que você não tinha ouvido antes, e são justamente do tipo que você adora! Então você faz uma cópia das músicas que esse novo amigo compartilhou com você. Você também lhe manda uma mensagem de agradecimento, com algumas dicas musicais, e vocês se tornam bons amigos.

Hoje em dia, sempre que você compra um CD ou DVD que gosta, você o preserva na pasta de cópias de reserva por P2P. Não há nada que o impeça de usar a rede como memória para preservar seu acesso às obras, nem de permitir que seus amigos tenham acesso a elas. Volta e meia você recebe um correio de um novo amigo lhe agradecendo por isso.

Um aspecto interessante da rede é que, quando cai um par, ela compensa a falta criando mais réplicas dos arquivos que estavam lá. Você não precisa pedir permissão a ninguém para transferir os arquivos que hospeda para outros pra lá e pra cá, assim como um provedor não precisa pedir permissão a ninguém para transferir os arquivos que você tenha solicitado de terceiros, ou para mantê-los em cache.

Quando você entra numa rede P2P só para baixar um arquivo, a situação é um pouco diferente, pois você tem uma noção muito mais precisa sobre o que está baixando e transmitindo. Porém, como vimos antes, é direito baixar uma obra artística e compartilhar o acesso a ela com um amigo. Se alguém que tem o direito de compartilhar o acesso obra com você e com outros pede sua ajuda para estendê-lo aos outros, por que não ajudar?

Mas e a pobre indústria editorial?

Artigo 27º. (2) Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.

– Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10 de dezembro de 1948

Sob o falso pretexto de ajudar os autores, que a desumana indústria editorial explora tanto quanto a nós, vai continuar tentando limitar o que as pessoas podem fazer, através de medidas técnicas e jurídicas, inventando barreiras tecnológicas para negar direitos fundamentais, ameaçando processar e jogar pessoas na cadeia por exercê-los, e contratando legisladores para aprovar leis nos tiram ainda mais direitos.

Por que deveria a sociedade aceitar leis que minam direitos humanos fundamentais, além de bases da sociedade tais como amizade e compartilhamento? Compartilhar com amigos não produz interesses materiais, logo nem mesmo um autor poderia invocar o direito humano à proteção de interesses materiais para se opor.

Tele-revolução

Se um dia desenvolvêssemos o tele-transporte, e a tecnologia se tornasse largamente disponível a baixos custos, empresas que dependessem da dificuldade de transportar pessoas ou bens de um lugar a outro teriam de rever suas estratégias. Algumas poderiam se adaptar e encontrar outras formas justas de ganhar dinheiro; outras pressionariam para preservar seus modelos de negócios obsoletos.

Mas imagine se o telégrafo houvesse sido proibido, por receios da indústria postal. Se o telefone, o e-mail e as mensagens instantâneas houvessem sido proibidos, por receios da indústria de telégrafo. Se telefones celulares e chamadas via Internet fossem proibidos, por receios da indústria de telefonia fixa.

Não faz sentido a sociedade proibir ou limitar o uso de tele-transporte apenas para manter a escassez que permitia às empresas de transporte lucrar; certamente não sem que essa privação traga, de alguma forma, um bem maior à sociedade em geral.

Multi-revolução

Se um dia desenvolvêssemos a tecnologia da multiplicação de objetos, e ela se tornasse largamente disponível a baixos custos, empresas que dependessem da dificuldade de produzir objetos e substâncias replicáveis teriam de rever suas estratégias. Algumas poderiam se adaptar e encontrar outras formas justas de ganhar dinheiro; outras pressionariam para preservar seus modelos de negócios obsoletos.

Mas imagine se a indústria panificadora tentasse proibir a multiplicação de pão para quem tem fome. Se a indústria de moda tentasse proibir a replicação de agasalho para quem tem frio. Se a indústria de medicamentos tentasse proibir a cópia de remédios para quem tem doenças. Se as indústria agropecuárias e de sementes tentassem proibir a reprodução de soja, milho, batata, trigo, arroz, feijão e outros alimentos. Absurdo! Não surpreende que alguns achem tão difícil de acreditar que pessoas inteligentes tenham sido induzidas a crucificar alguém por multiplicar e compartilhar peixe e pão, e por ensinar aos outros como realizar esses milagres.

Não faz sentido a sociedade proibir ou limitar o uso da multiplicação apenas para manter a escassez que permitia às empresas de manufatura lucrar; certamente não sem que essa privação traga, de alguma forma, um bem maior à sociedade em geral.

Inter-revolução

Acontece que computadores ligados à Internet são capazes de efetuar multiplicação de obras digitais à distância. Empresas que dependem da dificuldade de replicar e transportar essas obras têm de rever suas estratégias urgentemente. Algumas já se adaptaram e encontraram outras formas justas de ganhar dinheiro; outras têm pressionado para preservar seus modelos de negócios obsoletos.

Não faz sentido a sociedade proibir ou limitar o uso da multiplicação digital, local ou à distância, apenas para restaurar a escassez que permitiu aos editores lucrar antes desse avanço; certamente não sem que essa privação traga, de alguma forma, um bem maior à sociedade em geral.

Anti-revolução

Todas as leis numa sociedade democrática devem trazer benefício à sociedade. Direito autoral, por exemplo, é um monopólio limitado concedido pela sociedade a título de incentivo à publicação de obras artísticas, de forma que possam ser apreciadas e usadas por todos, ainda que alguns usos limitados, que seriam impossíveis sem a publicação, tenham de aguardar a expiração do monopólio.

Não há indícios de que conceder aos editores mais poder sobre autores e sobre nós vá trazer mais benefício a todos. Criminalizar supostas violações de direitos autorais não tem melhorado a qualidade cultural das obras publicadas. Estender a duração do direito autoral retroativamente, toda vez que Mickey Mouse está para finalmente cair no domínio público, não nos tem proporcionado mais obras de Walt Disney, nem novas (como poderia?) nem as já bem conhecidas. Conceder aos editores poderes de legisladores e juízes, aprovando leis que nos proíbam de contornar limitações tecnológicas deliberadas em seus produtos, mesmo para praticar atos a que temos direito, negaria à sociedade o próprio benefício que justifica o monopólio: permitir a todos a apreciação e o uso de obras, ainda que após um curto atraso.

Devemos manter em mente que o direito autoral foi projetado de modo a permitir apreciação privada, execução privada e compartilhamento e preservação da cultura, e que precisaríamos de razões muito boas para todos para nos privarmos disso. Devemos combater tentativas de virar essas leis do avesso, pois elas beneficiariam poucos em detrimento da maioria.

Direitos fundamentais e legítima defesa

Artigo 10º. Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.

– Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10 de dezembro de 1948

Quando alguma provisão legal ou projeto de lei parecerem entrar em conflito com direitos fundamentais, podemos e devemos defender nossos direitos, nos opondo a leis que os neguem ou os ponham em dúvida.

Como são direitos fundamentais, não devem ser tornados ilegais. Tratando-se de direitos, mesmo que haja provisões criminais que os pareçam cobrir, num estado de direito o exercício regular de direitos civis não pode ser considerado crime.

Quanto a outros meios privados de ataque a direitos fundamentais, a que a indústria freqüentemente recorre para impor restrições que violam direitos humanos, resistir ao ataque para se valer dos direitos civis significa agir em legítima defesa, o que, num estado de direito, também não pode ser considerado crime.


Escrito para os anais do Primeiro Congresso Estadual de Software Livre do Ceará, CESoL-CE, realizado em Fortaleza, Ceará, Brasil, de 18 a 23 de agosto de 2008.

Copyright 2008 Alexandre Oliva
Copyright 2008 FSFLA

Cópia literal, distribuição e publicação da íntegra deste artigo são permitidas em qualquer meio, em todo o mundo, desde que sejam preservadas a nota de copyright, a URL oficial do documento e esta nota de permissão.

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